Toninho, Churchill e o demônio

A noite abafada prometia um domingo quente na fronteira oriental da Polônia. Mas o próprio inferno escancarou-se às 3h15 da madrugada de 22 de junho de 1941, quando nove exércitos, 225 divisões, 10 mil tanques, 4 mil caças e bombardeiros, 750 mil cavalos e 4,5 milhões de homens — a maior operação militar da história — começaram a invasão nazista da União Soviética sob uma barragem de artilharia que clareou a escuridão com fogo e pólvora.
 
Horas antes, no sábado, alarmado pelas informações da inteligência britânica sobre a concentração de tropas alemãs na fronteira, o primeiro-ministro Winston Churchill comentou em Londres com seu secretário particular: “Se Hitler invadisse o inferno, eu faria ao menos uma referência favorável ao demônio no Parlamento”.
 
O comunista Stálin era o maior inimigo ideológico do líder conservador da Inglaterra. Mas Churchill sabia que, acima de suas fundas diferenças políticas, estava o diabólico inimigo do III Reich. Naquele grave momento, não cabia equidistância ou neutralidade.
 
O psicólogo com especialização em ciência política Antonio Carlos de Andrade, 57 anos, discorda de Churchill e ficaria neutro entre o comunista e o nazista. Sob o codinome político de Toninho do PSOL, ele arrebatou 200 mil surpreendentes votos, 14% da votação válida no DF, e provocou o impasse do segundo turno nas eleições de Brasília, disputadas entre a esquerda de Agnelo Queiroz (PT) e a direita de Joaquim Roriz (PSC).
 
Faltaram menos de dois pontos percentuais, sete vezes menos do que a votação de Toninho, para que a eleição brasiliense fosse liquidada ainda no primeiro turno. Agora, o líder do PSOL, que pode definir de vez a eleição com a autoridade de sua palavra, avisa: “Para manter a coerência, só me resta a opção pelo voto nulo”. Os principais conselheiros de Toninho explicam que, após 90 dias de campanha condenando um lado e outro, seria ‘hipocrisia’ fazer uma opção por qualquer facção.
 
Se Churchill tivesse a mesma e ingênua visão do processo político e histórico, lavaria as mãos na esperança de que Stálin e Hitler se destruíssem mutuamente. Mas o estadista inglês que Toninho deveria conhecer e reconhecer tinha a clara noção de que havia dramáticas nuances entre um e outro sistema ideológico. O nazi-fascismo, por todas as razões, era o perigo maior que justificava até elogios ao satanás.
 
Joaquim Roriz e sua mulher-laranja, que preenche o vazio do candidato-marido com a sua cômica ausência de idéias, curiosamente reduzem o eleitorado brasiliense ao conflito do bem contra o mal, do azul contra o vermelho, das forças cristãs contra as hordas do demônio. “Candidato Agnelo, o senhor é comunista e não acredita em Deus. O senhor é favorável ao aborto?” perguntou no debate da Rede Globo dona Weslian, a candidata-esposa de Roriz, com a inocência e a candura da santa que revela aos fiéis os graves pecados dos adversários.
 
Neste ideário balofo que mistura populismo, indigência vernacular, reacionarismo, ignorância, atraso e fundamentismo religioso, o folclórico ‘Casal 20’ do clã Roriz tenta prolongar seu mando eleitoral na capital brasileira — um contraditório laboratório onde convivem os mais altos padrões de vida e educação do Plano Piloto e os grotões mais atrasados dos votos submetidos às práticas assistencialistas e demagógicas que proliferam no miserável Entorno do Distrito Federal.
 
Dizendo-se coerente, num quadro desses, Toninho do PSOL avisa que votará nulo, como se fosse possível ficar neutro ou equidistante diante de um regressista projeto político que deixaria o próprio Lúcifer com cara de vítima.
 
Diante do risco iminente de uma nova invasão das hordas rorizistas, pelas fronteiras da farsa eleitoral, do fanatismo da fé e do clientelismo político, o candidato do PSOL alega imparcialidade. No primeiro turno, esta inaceitável ‘contradição em termos’ da política foi desfraldada, no sul do país, pelo candidato a governador José Fogaça.
 
Abertas as urnas, contou-se a mais fragorosa derrota da história do vigoroso PMDB do Rio Grande do Sul, que conquistou apenas um de cada quatro eleitores gaúchos (24%). Diante da “imparcialidade ativa” de Fogaça, o petista Tarso Genro liquidou a fatura ainda no primeiro turno, com 54% dos votos, um fato inédito no Estado que se orgulha das posições claras que sempre adotou na história, na politica, até no futebol. Na pátria do clássico Gre-Nal, ninguém é imparcial.
 
A eleição, como sabe agora Fogaça e saberá Toninho, é o momento da decisão, da escolha, da opção clara e objetiva entre uma proposta e outra — para ganhar ou até para perder. Um líder político que prega o voto nulo ou a imparcialidade é a própria negação da política e de sua principal função: a definição de caminhos que evitam o atraso ou permitem o avanço.
 
Se o exemplo do conservador Churchill não serve ao progressista Toninho, pode servir a lição do comunista Luiz Carlos Prestes.
 
Preso e torturado pela polícia de Filinto Muller no Estado Novo getulista, no final da década de 1930, o líder histórico do Partido Comunista viu sua mulher grávida de sete meses, a alemã e judia Olga Benário, ser entregue à Gestapo de Hitler. Ela morreu na câmara de gás do campo de concentração de Bernburg, na Alemanha, em fevereiro de 1942 — oito meses após a invasão da União Soviética, cinco anos após o nascimento na prisão de Anita Leocádia.
 
Apesar disso tudo, em novembro de 1947, quando o nazismo já estava derrotado e o Brasil redemocratizado, Prestes dividiu o palanque com seu ex-algoz Getúlio Vargas num comício no vale do Anhangabaú, no centro de São Paulo.
 
Prestes certamente tinha então razões bem mais sérias, feridas bem mais fundas, do que Toninho tem hoje para se declarar nulo, imparcial e equidistante.
 
O Toninho do PSOL tem a chance, agora, de crescer e se mostrar merecedor do voto consciente e consistente que recebeu em Brasília.
 
Ou, como ensinou Churchill, chegou a hora de fazer uma referência favorável ao demônio. Ou, dito de outra forma, contra ele.
 
(Original aqui.)

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