Esfinge egípcia

O Egito tem uma vasta população jovem: dois terços têm menos de 30 anos e a maioria está desempregada. Metade dos egípcios está abaixo da linha da pobreza. A maior rede de assistência social é oferecida pela Irmandade Islâmica, através das mesquitas. O grupo de oposição também controla os maiores sindicatos de médicos, enfermeiros e professores.

Esse é o quadro social no qual desatou a revolta egípcia. O quadro econômico é também dramático: US$ 10 bilhões saíram do país nas últimas horas: são investidores dos países do Golfo ou os muito ricos tirando seu dinheiro; valor enorme para um país que tem US$ 36 bilhões de reservas e um PIB de US$ 180 bilhões. A bolsa, depois de despencar, está fechada há quatro dias. Os bancos não funcionam. Por enquanto, não há ainda desabastecimento, mas não se sabe até quando. Grandes empresas estrangeiras começam a sair, como a Lafarge, da França, que tem a maior usina de produção de cimento do país. Fechou a usina e repatriou os executivos.

A revolta surgiu naturalmente e não apenas por contágio da Tunísia. As razões concretas são estas: uma juventude empobrecida e sem esperança, a inflação supera 11%, mas pode ser mais. O desemprego é muito maior do que os 9% admitidos pelo governo, segundo um observador brasileiro que acompanha o cotidiano da vida egípcia. As taxas de desocupação entre jovens são avassaladoras. O cálculo é que pelo menos metade da população vive com menos de US$ 2 ou menos de US$ 1 ao dia, ou seja, estaria abaixo da linha da pobreza e da linha da miséria usada pela ONU. Isso tudo se soma aos 30 anos de uma ditadura que ameaçava se eternizar através das manobras de Hosni Mubarak de fazer de seu filho, Gamal, seu sucessor.

Dos 22 países da Liga Árabe, só Egito e Jordânia reconhecem Israel. O detalhe é que a Jordânia tem 4 milhões de habitantes, e o Egito tem mais de 80 milhões, e a população cresce quase dois milhões por ano. Ao todo, 33% da população tem até 14 anos. O Egito tem 30% da população do mundo árabe. A Indonésia, que tem a maior população islâmica, o Irã e a Turquia não são árabes.

O governo Mubarak parece cada vez mais insustentável. Nos últimos dias, ele governou diretamente do quartel general da Aeronáutica, onde se sente mais seguro, mas quem está acompanhando de perto os fatos informa que: os egípcios de várias faixas etárias e dos mais diversos setores sociais demonstram estar decididos a permanecer nas ruas o tempo que for necessário para depor o governo. Ontem, por exemplo, às quatro da tarde, quando começou o toque de recolher, havia 250 mil pessoas na Praça Tahrir que não pareciam dispostas a sair. O movimento é nacional e não apenas nas grandes cidades. Aliás, há fortes manifestações em cidades como Ismailia e Porto Suez, além de Cairo e Alexandria.

O governo Barack Obama está na maior saia justa. O tom das declarações tem subido, mas não o suficiente para tirá-los da ambiguidade. Washington começou dizendo, na quarta-feira pasada, que o governo era estável e que deveria atender às “aspirações” populares por reformas, mas no fim de semana já estava falando — tanto Obama quanto a secretária de Estado Hillary Clinton — em “transição com ordem”. Mas como é fonte de US$ 1,3 bilhão de ajuda anual ao governo Mubarak, o governo americano precisa fazer mais para se desvencilhar dele.

Mohamed El-Baradei, apontado de forma unânime como representante da oposição, mandou recados claros ao governo americano de que se eles não mudarem de posição podem ter dificuldade de se relacionar com a atual oposição quando ela estiver no poder.

O Egito produz pouco petróleo, não mais que 680 mil barris/dia. É o 29 produtor do mundo, muito longe da Rússia e da Arábia Saudita — primeiro e segundo produtores do mundo — que produzem em torno de 10 milhões de barris/dia, cada um. Mesmo assim, o petróleo disparou. Isso pela importância logística do Canal de Suez e a incerteza política criada pelo levante. Como fica a Faixa de Gaza? Como fica Israel se houver mais um governo hostil na região? A que levará um levante com tantas razões concretas de insatisfação? Em que outros países surgirão revoltas?

O Egito vive da venda do pouco petróleo e gás que produz, do Canal de Suez e do turismo. O problema é que o país está em plena alta temporada de turismo, que vai de janeiro a março, mas estão fechados o Museu do Cairo, as visitas às Pirâmides e os cruzeiros pelo Rio Nilo. A embaixada brasileira tem aconselhado os turistas brasileiros a adiarem qualquer pacote já comprado para outra oportunidade. Neste momento, não se aconselha a viagem até pela impossibilidade de ir aos locais turísticos.

O território do Egito, de um milhão de Km é, em sua maioria, deserto. O pouco que consegue produzir de alimentos é em terra irrigada. Importou do Brasil no ano passado US$ 1,9 bilhão, sendo US$ 800 milhões em apenas três produtos: carne bovina, carne de frango e açúcar. O país é o segundo maior importador de trigo do mundo.

Essa é a herança que vai receber quem for governar o Egito. Um país com alta pobreza, graves problemas econômicos, brutal desigualdade e população reprimida por um governo que era tratado como o aliado mais confiável na região pelos Estados Unidos. No país, Gamal Abdel Nasser — que nacionalizou o Canal de Suez e enfrentou os estrangeiros com bandeira nacionalista nos anos 50 — ainda é visto como um mito a ser seguido. E a Irmandade Muçulmana é mais do que apenas um grupo de oposição. É também rede de proteção social para os muito pobres.

(Original aqui.)

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