Depois da ficha limpa, o jogo limpo

Pouco a pouco o país se reencontra com a letra e o espírito de sua constituição. Andavam meio afastados.

O Tribunal Superior Eleitoral é um dos que estão promovendo este reencontro.

Primeiro, através da defesa da Lei de Ficha Limpa. Agora, através do límpido, mas poderoso, voto da Ministra Nancy Aldrighi sobre a necessidade para o político ser candidato, portanto elegível, de ter suas contas eleitorais passadas, além de apresentadas, quitadas também.

Este voto da Min. Nancy foi iniciativa sua, na rotina de seu gabinete. Mostra que algumas vezes não é preciso pressão da mídia e das redes sociais para que o Poder Judiciário sintonize com o sentimento de justiça da opinião pública.

Quem instrumentalizava o desenocontro do país com sua constituição era a radical interpretação judicial formalista. Que interpretação é esta? Fácil perceber.

A lei exige que para ser elegível, o candidato, vitorioso ou derrotado, tenha a quitação eleitoral, através da apresentação das contas da campanha passada.

O Judiciário entendia que quitar seria apenas apresentar a contabilidade. Mas basta rápida ida ao Aurélio para constatar que quitar é mais. É saldar contas, estar livre de dívidas, estar desobrigado.

O mero ato de apresentar não desobriga. É passo inicial, necessário mas insuficiente.

A interpretação judicial deve ser útil. Mas útil para que? Para quem? A resposta é cada vez mais óbvia: para promover democracia e justiça.

Como estava, a interpretação formal dos ministros do TSE era, pretendendo ou não, pouco importa, útil também.

Mas não para o eleitor e a democracia. Era útil para que candidatos, que cometeram irregularidades, como abuso do poder econômico, continuassem a se candidatar.

Com duas consequências antidemocráticas. Primeiro, não assegurava a plena liberdade do julgamento do eleitor, que muitas vezes, sem saber, votava em candidatos que podiam até ter ficha limpa, mas não jogavam limpo. Desequilibravam, a seu favor, a competição eleitoral.

Segundo, diminuía a taxa da moralidade da política, que é princípio e regra constitucional. Além da ficha, o jogo também tem que ser limpo.

Quando o Ministro Marco Aurélio com razão afirma que não se deve potencializar a forma em detrimento do conteúdo, no fundo tenta restaurar o conteúdo moralizante, às vezes obscurecido da legislação eleitoral.

Infelizmente, o que parece racional e de senso comum deve ser contestado. Vão discordar que estar quitado, desobrigado, não é ato unilateral de apresentar contas, mas relação bilateral entre o candidato que apresenta e a cidadania que o desobriga, através de seu representante. Se não no próprio TSE, provavelmente no Supremo.

Com o atual sistema de recursos, quase tudo e todos, podem chegar ao Supremo. Basta ter recursos financeiros e uma tese jurídica.

As teses neste caso são muitas. Uma delas é que o TSE está ferindo os direitos dos candidatos, criando nova inelegibilidade: a de ter contas além de apresentadas, aprovadas também.

Mas não está não. Não se deve confundir condições de elegibilidade com inelegibilidades. Ter contas aprovadas é apenas uma condição tanto quanto a obrigatoriedade de pertencer a um partido político. Nada mais, mas tudo isto.

(Original aqui.)

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