Esclarecimentos sobre o voto em branco

Você provavelmente já ouviu esta frase: “Se eu votar em branco, meu voto será transferido para o candidato que estiver em primeiro.” Ou esta: “Os votos em branco são divididos entre todos os candidatos.” É assim mesmo que funciona?

Não, caros leitores. Mais uma vez afirmo: não é assim que funciona.

Da mesma forma que existem inúmeras lendas a respeito do voto nulo – escrevi sobre o mesmo nesta postagem – também a respeito do voto em branco existem algumas lendas, especialmente as duas acima apresentadas: 1) Os votos em branco são transferidos para aquele que está em 1º lugar na eleição; 2) Os votos em branco são divididos entre todos os candidatos, aumentando o número de votos de cada um.

Estas ideias, dentre tantas outras ideias esdrúxulas que aparecem na internet em tempos de eleição, são falsas, são errôneas. Não correspondem de forma alguma à realidade do sistema eleitoral brasileiro.

Um pouco de história. O art. 58, nº 6 do Código Eleitoral Brasileiro de 1932 (que, dentre outras inovações, garantiu o direito de voto às mulheres no Brasil) previa a contagem dos votos em branco para o cálculo do quociente eleitoral nas eleições proporcionais (quem não souber o que significa “quociente eleitoral” e/ou “eleição proporcional”, não se preocupe: retorne a este blog em dois ou três dias, quando explicarei detalhadamente cada um dos sistemas eleitorais brasileiros. Quem, porém, quiser se antecipar, pode dar uma olhada nos vídeos disponíveis neste link). O entendimento presente em tal artigo era o seguinte: deveriam ser contados os votos dados aos candidatos e também os votos em branco porque o que importava era o comparecimento do eleitor à zona eleitoral. Assim, àquela época “voto em branco” era bem diferente de “voto nulo”: os votos nulos não entravam na contagem porque “não existiam” juridicamente – é como se nunca tivessem sido dados a nenhum candidato; mas os votos em branco comprovavam a presença do eleitor e sua intenção de votar. Assim, os votos em branco entravam na contagem final das eleições. (Lembrem-se de que quando uso a expressão voto nulo estou me referindo àqueles anulados diretamente pelo eleitor. Se você ainda não leu meus esclarecimentos sobre o voto nulo, faça isto primeiro e depois retorne a este texto, para evitar confusão.)

Posteriormente, o parágrafo único do art. 56 do Código Eleitoral Brasileiro de 1950 e o parágrafo único do art. 106 do Código Eleitoral de 1965 (Lei 4.737/65, criado, portanto, durante a ditadura militar brasileira e ainda em vigor) passaram a chamar de válidos os votos dados a candidatos e/ou partidos, bem como os votos em branco, sendo que estes continuavam a ser considerados no somatório final de votos que definiria o resultado da eleição. Os votos nulos continuavam “de fora”, sendo, em oposição aos anteriores, considerados como votos inválidos.

Recapitulando, para deixar claro: com base no Código Eleitoral de 1965, eram considerados como válidos – ou seja, passíveis de serem computados para o resultado final da eleição – os votos dados aos candidatos e/ou às suas legendas, bem como os votos em branco. Já os votos nulos eram inválidos.

Veio, contudo, a Constituição de 1988, que em seu § 2º do art. 77 define claramente: “Será considerado eleito Presidente o candidato que, registrado por partido político, obtiver a maioria absoluta de votos [= 50% + 1], não computados os em branco e os nulos.” O mesmo critério foi estabelecido constitucionalmente para as eleições de governadores (art. 28) e para a eleição de prefeitos de municípios com mais de duzentos mil eleitores (inciso II do art. 29). Já o art. 45 da Constituição, que trata dos deputados federais, se cala a respeito da eleição dos mesmos, definindo apenas que “A Câmara dos Deputados compõe-se de representantes do povo, eleitos, pelo sistema proporcional, em cada Estado, em cada Território e no Distrito Federal.” Desta forma, a partir de 1988 estava posta a “confusão”: pelo Código Eleitoral em vigor, nas eleições proporcionais (para deputados federais, estaduais, distritais e vereadores) os votos em branco eram considerados como válidos; já nas eleições majoritárias (para presidente, governadores e prefeitos) os votos em branco eram desconsiderados (portanto, inválidos, juntamente com os votos nulos). Como conciliar o Código Eleitoral Brasileiro em vigor com o texto constitucional?

Entre 1988 e 1997, o entendimento do Tribunal Superior Eleitoral vinha sendo exatamente este: nas eleições majoritárias os votos em branco e nulos eram inválidos, e nas eleições proporcionais apenas os votos nulos eram inválidos. Desta forma, os votos em branco, nas eleições proporcionais, continuavam sendo contados para o cálculo do quociente eleitoral.

A situação só foi efetivamente solucionada a partir da chamada “Lei das Eleições” – Lei 9.504, de 1997. Os arts. 2º e 3º desta lei trazem explicitamente:

Art. 2º Será considerado eleito o candidato a Presidente ou a Governador que obtiver a maioria absoluta de votos, não computados os em branco e os nulos.

[…]

Art. 3º Será considerado eleito Prefeito o candidato que obtiver a maioria dos votos, não computados os em branco e os nulos.

Também o art. 5º desta lei é claro: “Nas eleições proporcionais, contam-se como válidos apenas os votos dados a candidatos regularmente inscritos e às legendas partidárias.”

Portanto, conclui-se que a partir de 1997 as eleições proporcionais foram harmonizadas em relação às eleições majoritárias, e passou-se a ter o entendimento de que:

  1. Em toda e qualquer eleição que ocorra no Brasil votos válidos são aqueles dados exclusivamente aos candidatos e/ou às legendas (partidos), enquanto votos inválidos são os votos em branco e os votos nulos;
  2. Contam-se, para o estabelecimento do resultado das eleições (tanto majoritária quanto proporcional), apenas os votos válidos, excluindo-se da contagem final os votos inválidos.

Este é o entendimento lógico: se o cidadão votou em branco, como pode seu voto ser considerado válido? Se ele está em branco, não foi dado a candidato algum, e portanto não pode ser válido para aquela eleição.

Feitas tais explicações, pergunta-se: de onde surgiram as lendas de “transferência de votos” em relação aos votos brancos?

A primeira explicação se refere à forma como as eleições ocorriam até 1996: por meio de cédulas de votação impressas nas quais o eleitor marcava com um “x” o candidato de sua preferência. Imaginemos a situação: o eleitor “A” ia votar e deixava sua cédula em branco. No momento da apuração, qualquer descuido por parte dos fiscais permitia que qualquer um marcasse na cédula, “votando” no lugar do eleitor “A” e computando um voto a mais para o candidato “escolhido”.

Outra explicação é matemática. Como disse, não explicarei nesta postagem o que significa “quociente eleitoral”, mas compreendam que o cômputo dos votos em branco como válidos gerava situações nas quais alguns partidos tinham candidatos eleitos, o que não ocorreria se os votos em branco forem considerados como inválidos. Daí a sensação de “transferência de votos” citada anteriormente.

Para finalizar, lembrem-se:

  • O voto em branco não vai para nenhum candidato, pois não há transferência de voto no sistema eleitoral brasileiro;
  • Votar em branco ou votar nulo, na prática, traz o mesmo resultado: beneficia os candidatos e/ou partidos que estão na frente nas pesquisas eleitorais;
  • Votos em branco ou nulos são juridicamente considerados como inválidos, sendo desconsiderados no cálculo final para o resultado das eleições;
  • Votar em branco ou votar nulo não é mecanismo de protesto. Por isso, quando você for votar, lembre-se que ao votar nulo ou em branco no primeiro turno você aumentará a chance do candidato que está em 1º lugar nas pesquisas eleitorais vencer logo no primeiro turno. Independentemente do candidato no qual você quer ou vai votar, propiciar a existência de um segundo turno é algo bastante interessante em termos políticos, já que desta forma há mais tempo para amadurecimento do processo eleitoral e para que os candidatos possam expor seus respectivos planos de governo.

PS: no botão verde da urna eletrônica está escrito “confirma”, e não “dane-se” 🙂

[ATUALIZAÇÃO] Mais informações sobre o sistema eleitoral brasileiro (proporcional e majoritário), sobre votos em branco e sobre votos nulos você encontra no livro Aprendendo a votar: noções básicas sobre o funcionamento das eleições no Brasil. O livro está disponível neste link.

24 comentários em “Esclarecimentos sobre o voto em branco”

  1. “Por isso, quando você for votar, lembre-se que ao votar nulo ou em branco no primeiro turno você aumentará a chance do candidato que está em 1º lugar nas pesquisas eleitorais vencer logo no primeiro turno. ”

    Esse é mais um argumento em favor do protesto contra a obrigatoriedade do voto… É o que defendo quando ambos os candidatos são ruins. Já passei várias vezes por esse dilema. É sacrificante ter de sair de casa para escolher entre o candidato horrível e seu rival: o terrível.

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    • Caro Roberto, olhando por este ponto de vista, concordo plenamente. O que temos é uma combinação perversa entre voto obrigatório e não-obrigatoriedade do eleito em seguir suas propostas e/ou “a vontade do povo”, o que gera completa falta de representatividade. Um abraço e volte sempre.

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      • Prezado Professor Mateus,

        Preliminarmente, faz-se necessário parabenizá-lo pelo vívido artigo e pela clareza das informações prestadas.

        Seu parecer técnico reforça minhas convicções de que o voto eletrônico cerceia aos eleitores o direito de, no sufrágio, demonstrar sua irresignação com a totalidade dos candidatos, porquanto impede que, no escrutínio, seja constatada a manifestação em favorável a um “candidato” que não conta da lista e que talvez resida em um zoológico.

        Ocorre, todavia, que esse renteamento à manifestação popular implica, no meu ver, na inscrição de candidatos, agora reais, cuja aceitação popular representa verdadeiro protesto às opções ditas ortodoxas.

        O que causa assombro é o desempenho dos candidatos eleitos por protesto ser superior ao dos políticos “profissionais”.

        Abraços,

        Leandro Rufino

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        • Prezado Rufino, em primeiro lugar, obrigado pela visita.

          Sem dúvida que a urna eletrônica cerceia a liberdade do cidadão “votar em quem quiser”, mas levanto duas ideias:

          1) De um ponto de vista mais prático, será que ela não foi criada também com este propósito, quando os políticos profissionais perceberam que outros estavam recebendo muitos votos que eram caracterizados como “de protesto”?

          2) De um ponto de vista jurídico aplicado à realidade, qual a consequência prática de protestar votando em alguém que não está registrado? Nenhuma.

          E daí vêm os candidatos “de protesto”, ou vistos pela população como tais (Enéas, Clodovil e Tiririca são os que me vêm à mente, dentre outros). Independentemente de fazerem ou não um bom trabalho após eleitos, estes tipos são muitas vezes eleitos pelo “oba-oba” da população, que não tem a mínima noção (generalizando) de como realmente tentar mudar alguma coisa – daí o seu e também meu assombro em relação à qualidade da participação política no Brasil de hoje.

          Um abraço!

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  2. Gostei do texto, pois esta confusão é quase que generalizada na cabeça do eleitorado brasileiro.
    diria que até na cabeça de pessoas esclarecidas, mas que não dão muita importância para determinados temas da vida politica.

    Um grande abraço Professor

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    • Este foi o objetivo, Jurandi: desmistificar as “lendas”, como escrevi no texto. Por isso o pedido que fiz, e refaço: tentar compartilhar para esclarecer as pessoas. Um abraço!

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  3. Muito interessante esta abordagem Matheus, Sempre tento explicar para as pessoas porque votar nulo ou branco não é uma forma inteligente de protesto, alias nem protesto é. Compartilharei seu texto em minhas redes sociais!

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  4. Texto muito interessante. Parabéns pelo excelente trabalho!
    Certamente, contribuiu de maneira significativa para a compreensão de todos os leitores.
    Abraços.
    Vera Moura.

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  5. Parbens!Muito esclarecedor, mais se eu não for as urnas sera que contribui para um protesto de uma obrigatoriedade em não votar? Não sei se fui clara vcs do Direito tem uma linguagem muito culta rsrsrrsrsr
    Obrigada!

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    • Olá, bom dia! Em termos jurídicos, não votar – ou seja, justificar o voto – não muda em nada, pois só entram na contagem os votos válidos. Neste ponto de vista, em termos de resultado eleitoral, não votar é a mesma coisa que votar em branco ou votar nulo – não muda nada. E sobre a linguagem, o importante é passar a mensagem. Espero ter ajudado. Um abraço e volte sempre.

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  6. Professor entendi claramente o q é voto nulo e branco, mas na questão de quociente eleitoral como o prof. disse que não explicaria agora, mas se não for incomodo, gostaria de entender claramente sobre isso, eu pesquisei muito para entender, mas fiquei com muita dúvida, aguardo futuras explicações sobre Q.E. boa tarde

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