A crucificação e a democracia

Em tempos de radicalismos e de estereótipos exacerbados, acredito ser função relevante a divulgação de ideias que nos façam refletir. Neste sentido, compartilho a seguir um texto a respeito da ideia de “vontade da maioria” como fundamentadora de uma democracia. Será que a maioria realmente deve ter todos os seus desejos atendidos pelo Estado? Deixem seus comentários ao final!

Por Walter Ceneviva

Pilatos ouviu a voz do povo, da qual se diz que é a voz de Deus. Negou, porém, a essência da democracia

O dia santo do Corpo de Cristo, seguido pela sexta-feira, inspira a prorrogação do descanso de aulas e trabalho, mesmo nas atividades da Justiça. A possibilidade do descanso me sugeriu a leitura da obra de Gustavo Zagrebelsky “A crucificação e a democracia” (Saraiva, 155 páginas). A linha adotada pelo escritor consistiu em avaliar a conduta de Pilatos entre o clamor do povo e o conceito da verdade sabida, ao que parece trazido por sua mulher, quando teve de resolver o destino de Cristo.

O clamor, invocado nos fatos mais espetaculosos do processo criminal, é, com alguma frequência, o aproveitamento do escândalo gerado. Já era assim ao tempo do Cristo. Apenas vem ampliado ao atingir toda a população com novos meios de comunicação, cujo desenvolvimento técnico parece interminável. Não é mais a multidão diante do palácio governamental, mas todo o povo. Seu efeito possibilitou, no século 20, a implantação da ditadura nos cinco continentes, de direita e de esquerda, desde 1918, quando terminou a Primeira Guerra Mundial até 1945, ao acabar a segunda.

A narrativa de Zagrebelsky é exemplar, o que não surpreende num juiz como ele, que presidiu a Corte Constitucional da Itália, a contar da versão da Bíblia, feita em 1641, por Giovanni Diodati. Sai agora na boa tradução de Mônica de Santis, para a Saraiva. Entre Barrabás e o Cristo, o povo salvou o primeiro. Pilatos foi um democrata no sentido estrito de que ouviu a voz do povo, da qual se diz que é a voz de Deus. Negou, porém, a essência da democracia. Deixou de lado a avaliação crítica da conduta dos dois condenados, sob ameaça da crucificação.

Na narrativa dos fatos cruciais desse momento histórico, surge a entrega de Jesus para que fosse sacrificado. Daí a frase em que a voz do povo foi divinizada para justificar a punição. Zagrebelsky considera totalitária tal concepção da democracia. Vê nela a marca da “ausência de procedimentos e de garantias”. Não de uma amostra da democracia, mas sim de um jogo de adulação da multidão para criar a impressão de que o caminho do poder havia dependido do povo.

Assim, tomar a expressão “a voz do povo é a voz de Deus”, no contexto da condenação do Cristo, é uma insensatez, estranha à democracia crítica. Na avaliação desta é essencial, em primeiro lugar, reconhecer e saber que “todos os homens são necessariamente limitados e falíveis”. A contradição é aparente. Zagrebelsky logo esclarece: “a democracia critica é fundamentada em um ponto essencial: o de que as virtudes e os defeitos de um indivíduo são também os de todos”. Se for assim, há o risco de se querer predominância para os melhores, por mérito. “O ponto de referência da democracia que aspira a melhor não é, porém, um ideal verdadeiro e justo, pelo qual ela seria esmagada e, assim, irremediavelmente condenada.”

Na democracia crítica, a soberania popular subsiste, mais ainda agora, ao ser negada a infalibilidade do povo e ser reconhecida a crise dos partidos políticos. Nem há certeza de que seja possível superá-la. “Na política, a mansidão, para não parecer imbecilidade, deve ser uma virtude recíproca. Se assim não for, a certa altura, antes do fim, é preciso quebrar o silêncio e agitar para não tolerar mais.”

(Original aqui.)

10 comentários em “A crucificação e a democracia”

  1. Democracia está lá no tempo de Platão,Zeus,etc…Creio que nos dias de hoje onde o conceito de povo não existe mais e sim – castas.

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  2. Entendo eu, que o povo não acerta em suas escolhas, por não ser preparado para exercer sua cidadania, que poderia se realizar por meio da educação. Eu me pergunto, como se pode parar esse círculo vicioso, de más escolhas e de governantes omissos?

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  3. Este julgamento de interesse, atualmente, mais conhecido como clamor social somente confirma q a “unanimidade é burra”. Percebe-se q falta mais compromisso e dedicação e isto é mais antigo do que se imagina. Traços de desvio psicológicos têm três modos de superação: querer mudar; tratar e mudar de conduda; se estes fatores não tiverem concatenados, certamente, não alcançaram êxito. Os políticos, sabendo disso, trazem para si o favor do povo,tudo estratégica eleitoreira, com um único propósitos de se estabilizarem no poder.

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