Uma saúde “tendencialmente gratuita”

Entende-se a saúde como um direito fundamental, o que significa dizer que todos devem ter acesso ao mesmo. No caso brasileiro, a saúde deve ser pública e gratuita. Este modelo é sustentável?

A Constituição brasileira de 1988 trouxe, como uma de suas principais inovações, o direito à saúde, apresentado primeiramente em seu art. 6º. Como tal, o direito à saúde apresenta-se como um direito fundamental, sendo inúmeras as decisões judiciais acerca da garantia deste direito aos cidadãos brasileiros (dando origem, inclusive, à crítica referente ao eventual ativismo judicial). Também na Constituição brasileira, além do momento em que são definidas as competências de cada ente federado, a saúde aparece mais ao seu final, quando se fala acerca da seguridade social e, especialmente, no art. 196, que traz que “a saúde é direito de todos e dever do Estado”. Importa destacar ainda, como é de conhecimento de todo brasileiro, que a Constituição estabeleceu o chamado “Sistema Único de Saúde”, cujo financiamento é feito “com recursos do orçamento da seguridade social, da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, além de outras fontes”.

Uma das inspirações — senão a principal — para a Constituição brasileira de 1988 foi a Constituição portuguesa de 1976. Estas constituições têm em comum, em perspectiva histórica, o fato de terem sido criadas como uma espécie de “reação” a um passado autoritário, por um lado, e, por outro, contêm inúmeros direitos e garantias fundamentais que abarcam não apenas os chamados “direitos, liberdades e garantias” — ou direitos de primeira dimensão — mas também os chamados “direitos econômicos, sociais e culturais” — ou seja, os direitos de segunda dimensão. Neste contexto, a Constituição portuguesa traz o direito à saúde de maneira explícita em seu art. 64, como se vê a seguir:

Artigo 64.º

Saúde

1. Todos têm direito à protecção da saúde e o dever de a defender e promover.

2. O direito à protecção da saúde é realizado:

a) Através de um serviço nacional de saúde universal e geral e, tendo em conta as condições económicas e sociais dos cidadãos, tendencialmente gratuito;

b) Pela criação de condições económicas, sociais, culturais e ambientais que garantam, designadamente, a protecção da infância, da juventude e da velhice, e pela melhoria sistemática das condições de vida e de trabalho, bem como pela promoção da cultura física e desportiva, escolar e popular, e ainda pelo desenvolvimento da educação sanitária do povo e de práticas de vida saudável.

3. Para assegurar o direito à protecção da saúde, incumbe prioritariamente ao Estado:

a) Garantir o acesso de todos os cidadãos, independentemente da sua condição económica, aos cuidados da medicina preventiva, curativa e de reabilitação;

b) Garantir uma racional e eficiente cobertura de todo o país em recursos humanos e unidades de saúde;

c) Orientar a sua acção para a socialização dos custos dos cuidados médicos e medicamentosos;

d) Disciplinar e fiscalizar as formas empresariais e privadas da medicina, articulando-as com o serviço nacional de saúde, por forma a assegurar, nas instituições de saúde públicas e privadas, adequados padrões de eficiência e de qualidade;

e) Disciplinar e controlar a produção, a distribuição, a comercialização e o uso dos produtos químicos, biológicos e farmacêuticos e outros meios de tratamento e diagnóstico;

f) Estabelecer políticas de prevenção e tratamento da toxicodependência.

4. O serviço nacional de saúde tem gestão descentralizada e participada.

Tenha o leitor atenção aos itens destacados: primeiro, que a saúde é pública, mas tendencialmente gratuita; segundo, que os custos devem ser socializados entre todos os cidadãos.

Por que chamo a atenção destes pontos?

Hoje tive a oportunidade de visitar um posto de saúde aqui em Lisboa. Felizmente não o fiz para tratar de algum problema de saúde — estou 100% —, mas sim para poder fazer o meu cadastro no Serviço Nacional de Saúde de Portugal, para que eu possa vir a utilizar o serviço caso haja alguma eventualidade. Por estar no posto de saúde, aproveitei a oportunidade para já realizar uma consulta de caráter geral, e para tanto paguei o valor de 5 euros.

Antes de continuar, tenha o leitor em mente o seguinte: apesar de eu colocar os valores em euros, não pensem nesta moeda. Se eu disser que a tarifa do metrô custa 1,40 euro e convertermos para reais, na cotação de hoje isto equivale a R$ 6 pelo site xe.com. Ora, para mim R$ 6 como tarifa de metrô é caro. Mas se eu olhar apenas para o número — 1,40 — vou achar barato. Portanto, sugiro que vocês não façam a conversão dos euros para reais, mas sim olhem para os números de maneira absoluta. Ou então convertam também o salário mínimo — de 589 euros, ou pouco mais de R$ 2.500, para que seja possível fazer esta comparação.

Por que eu paguei 5 euros para ser atendido em um posto de saúde da rede pública de Portugal? Não, não é porque aqui sou estrangeiro — já que, como brasileiro, valho-me de um acordo entre os governos dos dois países que me permite pagar exatamente o mesmo que um português paga nos serviços de saúde. Paguei 5 euros pela consulta — assim como pagam 5 euros todos os portugueses por este tipo de consulta — porque a saúde é pública, mas apenas tendencialmente gratuita. Ou seja, o cidadão, para ser atendido em consultas regulares, precisa realizar o pagamento deste valor.

Em resumo: o sistema é gratuito, mas cobram-se taxas conforme as condições econômicas — e conforme o serviço prestado — tendo-se por objetivo a racionalização da prestação do serviço público de saúde, ou, por outras palavras, busca-se evitar que o cidadão dirija-se ao hospital caso sinta uma simples dor de cabeça.

Qual o resultado disto? Falo pelo que vi: não havia absolutamente ninguém para ser atendido no momento em que cheguei para realizar meu cadastro. Enquanto esperei pela realização do meu cadastro — o que durou por volta de 30 minutos — o funcionário que me atendeu também atendeu a outras 12 pessoas, sendo que a maioria destas era para marcação de consultas — e todas elas fazendo o pagamento de 5 euros — e se não pudessem pagar naquele momento não haveria problema, já que fica constando no perfil do cidadão que ele possui um débito que pode ser pago no futuro. Apenas uma pessoa foi atendida em situação de emergência, com dores no ouvido. O tempo de espera de todas elas foi inferior a 5 minutos.

E isto sem falar no próprio posto de saúde, cuja estrutura física estava impecável, apesar de se localizar em um edifício não tão novo (coloquei algumas fotos no snapchat — quem quiser me seguir: mpassosbr).

Ainda estou conhecendo o sistema de saúde português — e espero conhecê-lo por meio do estudo de suas leis, decretos e estrutura administrativa, não in loco. De todo jeito, o que pude perceber é que a necessidade de pagamento para o atendimento reduz bastante o número de pessoas que — como disse antes — dirigem-se a um hospital ou posto de saúde por estarem sentindo uma simples dor de cabeça. E não falo isto de uma maneira abstrata, mas sim por ter visto isto acontecer em Brasília quando tive laringite em 2014: na ocasião escutei pessoas dizendo que “ao menor sinal de dores” dirigem-se a hospitais para solicitar atendimento e/ou remédios. Talvez se houvesse uma cobrança mínima tais pessoas pensassem duas vezes antes de ir aos hospitais e postos de saúde, o que, me parece, auxiliaria tanto para que estes locais fossem desafogados, por um lado, quanto com o aumento de receita em benefício do próprio sistema de saúde, por outro.

Por fim, vale destacar que ninguém fica sem acesso à saúde aqui em Portugal. Por outras palavras, significa dizer que pessoas que não têm condições econômicas de pagar os 5 euros nas consultas são atendidas normalmente, já que aquelas famílias cuja renda mensal seja inferior a 628 euros são isentas de tais pagamentos. Este é o sentido da expressão “tendencialmente gratuita” na Constituição portuguesa.

E você, o que acha da saúde tendencialmente gratuita? Será que tal modelo poderia vir a ser aplicado no Brasil para (tentar) solucionar os problemas da superlotação e da falta de recursos? Ou acha que isto é absurdo? Deixe abaixo seus comentários!

8 comentários em “Uma saúde “tendencialmente gratuita””

  1. Boa noite, professor! Saudades do senhor. Li rapidamente seu texto. Mas, acredito que tal modelo não se aplicaria no Brasil. Trabalhei 2 anos numa UPA (Unidade de Pronto Atendimento) e a filosofia ou proposta é até interessante. Conduto, há um hiato expressivo entre os três setores (primário, secundário e terciário) e o conhecimento da população. A lógico, no Brasil, dos postos de saúde é justamente para o acompanhamento de doenças crônicas, problemas de menor complexidade etc. As UPAs, por exemplo, têm a finalidade de estabilizar um paciente mais grave e encaminhá-lo para os hospitais de maior complexidade (tipo Hospital de Base). Os casos de menor resolução podem também ser atendidos lá, mas o ideal é no Posto de Saúde. Muitos chegam aos hospitais com uma dor de garganta, por exemplo. É falta de conhecimento, o primeiro problema. E o segundo é falta de gestão. Os recursos para a saúde existem. Acredito que a cobrança não seria legal no Brasil. (Legal não no sentido jurídico). Ademais, deveria haver um controle rígido desse dinheiro que iria entrar na unidade, o que no Brasil, lamentavelmente, não é tão simples assim… rsrsrsrs.

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    • Marcos Paulo, boa tarde! Obrigado pelo seu comentário e desculpe-me pela demora em respondê-lo. Concordo com suas ponderações, especialmente no que diz respeito ao controle do dinheiro. Mas creio ser possível este controle, já que o sistema existe por aqui. De todo jeito, obrigado por trazer a sua contribuição sobre as UPAs, acerca das quais eu não tinha conhecimento. Um abraço e volte sempre! Sua presença sempre é bem vinda por aqui!

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  2. Essas são as suas suposições ou existe alguma pesquisa que sustente essa teoria?
    Essa comparação é muito superficial, e não leva em conta outros fatores que podem influenciar a situação, tanto no Brasil como em Portugal. Cultura, educação, acesso à informação são um desses pontos que vc não mencionou. Isso, é claro, comparando Lisboa à Brasília, oq em nada representa a situação geral dos dois países. Essas afirmações anedóticas somadas à soluções miraculosas (pagar uma taxinha) não contribuem pra discussão do sistema de saúde público. Muito pelo contrário, parece só reforçar o senso comum de que “pagando tudo se resolve”.

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    • Sua capacidade de interpretação está tão “elevada” que não percebeu que eu apenas relatei o que vi — e não percebeu a despeito de eu ter deixado isso explícito no texto. Assim como deixei explícito que ainda estou conhecendo o sistema de saúde daqui — portanto, logicamente estou falando de um posto de saúde de uma cidade portuguesa — o que significa dizer que, ainda que as regras sejam as mesmas para todas, talvez em outras localidades menos abastadas haja mais pessoas no posto de saúde. Além disso, não se está aqui a falar em nenhuma “solução miraculosa”, mas sim na descrição de uma forma de se estruturar o sistema de saúde de um país — forma esta que com certeza tem prós e contras, assim como o sistema de saúde brasileiro. Ainda, em nenhum momento do texto defendi a ideia de que “pagando tudo se resolve”, mas sim trouxe esta ideia para debate acerca do tema. Por fim, gostaria mesmo de saber quais partes foram “anedóticas” e que te fizeram rir — já que em princípio uma anedota é contada para criar o riso em seu interlocutor. E uma sugestão: se não há nada a acrescentar — como foi explicitamente o caso de seu comentário, que não agregou absolutamente nada ao debate acerca do tema —, não se manifeste. Fica pior quando se busca criticar algo sem propor nada em troca — ainda mais criticar utilizando-se de palavras que, claramente, denotam seu interesse em desmerecer o interlocutor e não a ideia deste.

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  3. Basta ir na UPA , Posto de Saúde ou Emergência de Hospital em dia de jogo do Brasil na Copa, Reveillon, Natal, etc que verá a unidade vazia, pois a grande maioria que comparece realmente não precisa.
    Sou Médico, trabalho na numa unidade de alta complexidade e chega “topada no dedão” pra eu atender, não sei qual a solução, mas do jeito atual congestiona o sistema.
    Acho que tem uma questão trabalhista nisso tudo também, para emissão de atestados e falta ao trabalho. Gostaria de saber como funciona isso em países desenvolvidos, a justificativa de falta ao trabalho.

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  4. Olá professor Matheus, preliminarmente informo que fui seu aluno no primeiro semestre do curso de Direito da Faculdade Projeção, em 2011, posteriormente migrei para o Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), onde concluí o curso com bastante êxito, onde também me tornei funcionário da IES, na função de Consultor Comercial. Atualmente continuo estudando no IDP, cursando a graduação em Administração Pública.

    Salienta-se, no entanto, que admiro muito o seu trabalho como docente pelo domínio que possui acerca da disciplina que ministra, bem como, pela eficiência aplicada às suas aulas.

    Em relação ao tema saúde pública, acredito veementemente que “não falta dinheiro à administração pública brasileira, falta gestão”.

    Nesse sentido, acho pouco provável a saúde pública no Brasil lograr êxito por meio do aludido modelo português: “saúde tendencialmente gratuita”.

    O Estado brasileiro carece exponencialmente de uma “Reforma Profissionalizante” em sua gestão, de modo que haja profissionalização no Setor Público em todas as esferas de Governo (Federal, Estadual/Distrital e Municipal).

    A Administração Pública clama por profissionalização, principalmente no setor de saúde. Portanto, somente o modelo utilizado por Portugal não seria suficiente para resolver os problemas no Brasil.

    Os grandes desafios do Estado Contemporâneo reforçam a necessidade de contratação (direta e indireta) de profissionais altamente qualificados, na busca por uma gestão eficiente, eficaz, efetiva, e, sobretudo, capaz de aliar desenvolvimento social e econômico com diminuição dos gastos públicos.

    Nesse contexto, sou favorável à aprovação de uma Emenda à Constituição para a criação de duas novas e importantes carreiras típicas de Estado: a carreira de médico como servidor público Federal, vinculado ao Ministério da Saúde, para atuação profissional em todo o território nacional e a carreira de “Gestor Público de Saúde”, vinculada ao MPOG, de modo que a gestão dos hospitais públicos do País pudesse ser feita por Administradores Públicos especializados nesse segmento.

    No Brasil, o que mais se vê são instituições públicas sendo administradas por pessoas incompetentes, sem nenhuma qualificação para tal. É muito comum ver médicos atuando como diretor de hospital e exercendo funções relativas à gestão da organização, as quais deveriam ser exercidas por Administradores profissionais, comprometidos com a ética e qualificados para a gestão eficiente do sistema.

    No cenário atual, a alternativa mais viável para o Estado resolver os recorrentes problemas desencadeados pela má gestão das organizações é por meio da profissionalização do Setor Público. Esse é o caminho para fortalecer as instituições do País e restabelecer a confiança, na busca por serviços públicos de qualidade no atendimento aos anseios da sociedade.

    Esse é o meu ponto de vista.

    José Everaldo Rodrigues

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    • Everaldo, bom dia! Parabéns por ter terminado o curso e ter continuado os estudos. Isso é ótimo.

      Acerca do seu posicionamento, eu concordo plenamente: há dinheiro, mas falta gestão. Problema este que, infelizmente, se alastra para outras esferas do funcionalismo público, com algumas exceções.

      Espero que possamos continuar sempre buscando melhorias para fazer do Estado brasileiro uma instituição que efetivamente represente a vontade popular!

      Um abraço e obrigado pela participação.

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