O gigante ainda precisa acordar

Lembro-me de que há certo tempo atrás havia uma propaganda que mostrava um “gigante” surgindo a partir do Pão de Açúcar, no Rio de Janeiro. O “slogan” da propaganda foi rapidamente apropriado por manifestantes, especialmente nas manifestações de 2013, afirmando que “o gigante acordou”.

As manifestações daquele ano foram consideradas por muitos analistas como as maiores já ocorridas no Brasil desde o movimento “Diretas Já”, tendo, portanto, suplantado as manifestações pelo impeachment do ex-presidente Fernando Collor. E parece que o povo brasileiro “pegou o gosto” por manifestações, já que estas passaram a ocorrer com relativa constância nestes últimos 3 anos – tendo os últimos episódios ocorrido na primeira quinzena de março. Contudo, a despeito do número de pessoas que saem às ruas, será possível afirmar que as manifestações têm resultado prático? Seriam elas mecanismos eficazes para a expressão do poder político do povo?

Em primeiro lugar, é importante ressaltar alguns aspectos técnicos sobre o modo de funcionamento da democracia no Brasil. Apesar de eu já ter escrito sobre o tema em outros momentos (por exemplo aqui, aqui, aqui e aqui), é necessário deixar claro o que significa o conceito para aí podermos analisá-lo na prática. E como estou escrevendo de maneira mais informal vou me abster de fazer as indicações precisas “conforme as regras da ABNT”.

A democracia pode ser entendida como o “governo do povo”. Entretanto, vale lembrar que nos regimes democráticos da atualidade não é o povo quem exerce diretamente o poder político, mas sim seus representantes que são por ele – pelo povo – escolhidos. Em outras palavras, significa dizer que vivemos em uma época em que a palavra, e até mesmo o conteúdo principiológico do conceito, é idêntica àquela utilizada na Grécia antiga, mas a forma de seu exercício é bastante diferente: não é mais o cidadão quem cria a lei à qual se submete, mas sim outras pessoas – os representantes – que atuam em seu nome.

É assim que a Constituição traz, de maneira explícita – e emblemática – já em seu início que o Brasil é um “Estado democrático de direito” e que o poder, apesar de emanar no povo, é exercido em seu nome por representantes eleitos. Claro que a Constituição afirma que o poder pode ser exercido diretamente pelo povo, mas isto é feito de maneira subsidiária e excepcional por meio de plebiscito, referendo ou lei de iniciativa popular. Assim, para o objetivo a ser aqui desenvolvido é importante destacar que a democracia brasileira é necessariamente uma democracia representativa.

Quem representa o povo? Mais uma vez, uma “tecnicidade”, como diriam alguns: não são exatamente os parlamentares eleitos, mas sim os partidos políticos que representam os cidadãos. Por outras palavras, significa dizer que são estas instituições que são as depositárias do voto dos cidadãos, já que os cálculos eleitorais são feitos inicialmente com base no número de votos recebidos pelos partidos políticos, não pelos candidatos propriamente ditos. Em síntese: o poder político do qual os cidadãos são titulares é exercido de maneira indireta pelo povo, já que quem efetivamente exerce o poder político são os partidos – e os parlamentares, em tese, colocam em prática as diretivas estabelecidas pelos partidos políticos. É assim que funciona a representação no Brasil em termos jurídicos.

Em termos políticos a coisa é um pouco diferente. O jurista italiano Norberto Bobbio deixa claro que a palavra poder significa a capacidade que alguém tem de definir o comportamento de outrem usando os meios de que dispõe com o objetivo de atingir determinados objetivos. Traduzindo para exemplos práticos:

  1. Se eu sou uma pessoa extremamente rica possuo um meio (no caso, o meio econômico).
  2. Se eu ofereço a alguém X milhões para este alguém fazer algo que eu quero que este alguém faça e se este alguém faz o que quero, então eu exerci poder sobre esta pessoa.
  3. Porém, se eu ofereço a alguém X milhões para este alguém fazer algo que eu quero que este alguém faça e se este alguém não fizer o que quero, independentemente do motivo, então eu não exerci poder sobre esta pessoa.

Portanto, surge a primeira pergunta: o povo exerce poder em relação aos rumos do Estado? Já vimos que em termos jurídicos sim, mas em termos políticos tenho a convicção de que não exerce. E não exerce porque não há nenhum mecanismo disponível ao povo – nenhum mecanismo legal, ou seja, que esteja dentro da lei – para que o povo obrigue o Estado (ou para que o povo obrigue os parlamentares eleitos) a fazer o que ele quer.

E é aí que a gente chega nas manifestações. Em minhas aulas inúmeras vezes me questionavam: “mas professor, veja que o povo saiu às ruas e sua vontade foi ouvida”. Ou então diziam: “professor, os políticos precisam ouvir ‘a voz do povo’ porque é o que o povo quer e ‘eles’ são obrigados a fazer o que o povo quer”. Ou outras frases neste sentido. E (infelizmente) eu sempre discordava destas frases, assim como continuo discordando. Não entrarei aqui no mérito sociológico das manifestações – por exemplo, se elas efetivamente representam a vontade da maioria do povo brasileiro ou se representam apenas a vontade de uma parcela da sociedade –, mas sim nos méritos jurídico e político.

Do ponto de vista jurídico, eu considero que as manifestações correspondem ao exercício de alguns direitos fundamentais, mas não de direitos políticos propriamente ditos. Para mim as manifestações correspondem ao exercício da liberdade de expressão em suas inúmeras vertentes, enquadrando-se em alguns incisos do art. 5º – tais como o inciso IV, a primeira parte do inciso VI, o inciso IX e também o inciso XVI. Ou seja, os cidadãos têm garantida total liberdade de se organizar em grupos e de exprimir publicamente seus pontos de vista, de exprimir suas ideias, suas crenças políticas. Mas as manifestações não são, do ponto de vista jurídico, o exercício de um direito político propriamente dito, já que o exercício deste direito político está vinculado, juridicamente falando, ao voto em eleições, em plebiscitos e em referendos, além da possibilidade de criação de leis de iniciativa popular conforme previsão do art. 14 da Constituição.

Do ponto de vista político é possível dizer que as manifestações logicamente têm sua importância e seu impacto, mas elas não correspondem ao exercício do poder político propriamente dito. Por outras palavras, o que eu quero dizer é que as manifestações são um mecanismo de pressão popular sobre o Estado, sem dúvida alguma, mas não são o exercício do poder político porque o poder, como expliquei antes, pressupõe uma relação de mando e de obediência – e isto não ocorre nas manifestações: o fato do povo se mobilizar e ir às ruas para se manifestar contra ou a favor de algo não faz com que o Estado, obrigatoriamente, faça aquilo que os manifestantes querem.

Repito, para evitar qualquer tipo de má interpretação, que as manifestações são legítimas, importantes e fundamentais para o exercício da democracia. Tais eventos se apresentam como fundamentais, ao meu ver, porque é por meio deles que o povo pode, explicitamente, demonstrar aos governantes o que pensa sobre determinado assunto – se concorda ou se discorda (ainda que existam inúmeros estudos que mostram que as manifestações no Brasil têm tido um caráter difuso, ou seja, sem muito foco, o que prejudica a expressão da vontade popular – mas isto é outra história e não vou tratar do tema aqui).

Entretanto, não se pode afirmar que as manifestações tenham efetivamente a prerrogativa de decidir alguma coisa – não apenas porque do ponto de vista jurídico efetivamente não decidem (e é bom que seja assim), mas também porque do ponto de vista político elas nem sempre conseguem fazer com que os governantes mudem seu comportamento conforme a vontade dos manifestantes.

De todo jeito, é salutar a manifestação do pensamento do povo para o desenvolvimento da democracia brasileira. Demonstra a pluralidade de pensamentos e o interesse em melhorar a arena política atual do nosso país, a qual está reconhecidamente em frangalhos e, em consequência, não consegue dar efetividade à representação política do cidadão. Apenas espero que este “lindo momento cívico” que vivemos não seja futuramente perdido, ou seja, espero que o povo brasileiro – o “gigante” da propaganda – efetivamente acorde e perceba que sem o seu próprio envolvimento constante nas questões da coletividade o bem comum não será atingido tão cedo.

(E pra quem quiser saber o que penso sobre este envolvimento dos cidadãos nas questões coletivas, sugiro assistir a estes vídeos: um sobre o dever fundamental de participação política do cidadão, que engloba a reestruturação dos partidos políticos no Brasil, e outro sobre a ideia de cidadania ativa e como isto pode criar mecanismos que aprofundem a participação do cidadão, tanto do ponto de vista jurídico quanto político. Ah, e se inscrevam no meu Canal no YouTube.)

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