A democracia como conceito fundamental do Estado contemporâneo


Tenho recebido ultimamente alguns emails de pessoas pedindo auxílio em relação ao tema da democracia. Para tanto resolvi disponibilizar a seguir parte de um texto que escrevi intitulado A democracia como conceito fundamental do Estado contemporâneo. Espero que seja útil! E após a leitura não se esqueça de deixar logo abaixo seus comentários ou de entrar em contato para debatermos o tema.

Um abraço a todos e até a próxima!

Prof. Matheus Passos


A democracia como conceito fundamental do Estado contemporâneoFalar sobre o conceito de democracia é uma tarefa difícil. A dificuldade se apresenta, em primeiro lugar, porque há verdadeira idealização do conceito, especialmente quando se fala da democracia da Grécia antiga como um modelo ideal a ser buscado, o que faz com que na atualidade a identificação de algo como democrático leve inexoravelmente ao entendimento de que este algo é bom. Em segundo lugar, existem inúmeros autores que falam sobre o conceito, definindo-o muitas vezes de maneiras até mesmo contraditórias, o que vem a dificultar muitas vezes o entendimento claro do conceito. E a dificuldade continua na prática: talvez seja possível afirmar que não exista nenhum país no mundo que não se defina como democrático.

Portanto, é tarefa do pesquisador a definição clara do conceito teórico com o qual irá trabalhar. É nesta perspectiva que serão a seguir feitos alguns apontamentos com o objetivo de apresentar uma definição teórica da democracia que possa ser utilizada para a análise da realidade prática do cidadão, análise esta que será feita mais à frente nesse texto.

Ainda que seja lugar-comum identificar o surgimento da democracia na Grécia antiga, a ideia que aqui se apresenta diz respeito à chamada democracia partidária. Significa dizer que só se pode falar em democracia em seu sentido contemporâneo a partir do momento em que surgiram as condições materiais para o exercício do voto por parte do cidadão, por um lado, ao mesmo tempo em que por outro surgiram os partidos políticos como instituições responsáveis por concretizar a representação do cidadão junto ao Estado.

No que diz respeito ao primeiro aspecto, importa destacar a importância das revoluções liberais de fins do século XVIII e início do século XIX. Tais revoluções trouxeram a ideia de limitação do poder do Estado ao mesmo tempo em que contribuíram com a ideia da representação de parcelas da população junto a este mesmo Estado. A limitação do poder do Estado foi fundamental para que se garantisse ao cidadão a liberdade necessária para agir em sua esfera privada, livre de quaisquer constrangimentos impostos pelo Estado na definição da sua vontade política. Por sua vez, de nada adiantava a existência deste espaço de liberdade individual se tal liberdade não pudesse ser usufruída pelo cidadão. É nesta perspectiva que se vislumbrou a necessidade de representação de parcelas da população.

Vale destacar, entretanto, que tais acontecimentos não correspondem à efetiva democratização da sociedade daquele período. O que se viu foi o surgimento de teorias da representação, mas não de teorias realmente democráticas: o que existia era a legitimação dos governantes por meio de eleições sem, contudo, haver a participação efetiva dos governados nos rumos do Estado. Nesta situação o cidadão não era o titular do direito político, mas sim o seu representante (MIRANDA, 2007, p. 15-7) – já que não existiam vínculos político-jurídicos reais entre eleito e eleitor, mas sim vínculos sociais entre os mesmos (MANIN, 2002, p. 203-4). Mais que isso, vale destacar que apenas uma parcela relativamente pequena da população era representada, já que existiam limitações censitárias e/ou de gênero nas eleições daquele período (MIRANDA, 2014, p. 376).



Apenas em fins do século XIX e início do século XX é que se pode falar em efetiva democratização da sociedade a partir do momento em que ocorreu a expansão do sufrágio, que se tornou universal. Assim, a extinção de critérios censitários para o voto e o aumento do número de titulares de capacidade eleitoral ativa e passiva fizeram com que o cidadão se transformasse no titular efetivo do poder político de maneira que sua vontade fosse “jurídica e politicamente eficaz” (MIRANDA, 2007, p. 17), vindo assim a interferir diretamente nas ações do Estado. Em suma, criaram-se neste período vínculos político-jurídicos reais entre eleito e eleitor de maneira que o primeiro passou a ser escolhido pelo segundo conforme normas juridicamente estabelecidas que, por sua vez, foram criadas respeitando-se a vontade do segundo.

A expansão dos direitos políticos a largas camadas da sociedade ocorreu concomitantemente com outro fenômeno da esfera político-jurídica, qual seja, o surgimento dos chamados partidos políticos de massa. Antes, vale destacar que um partido político é uma instituição associativa que visa a um fim deliberado, seja tal fim compreendido em sentido “positivo” – a concretização da vontade do cidadão –, seja em sentido “negativo” – a busca de honras e de glórias para seus membros, em especial para seus líderes (OPPO, 1998, p. 898-9). Além disso, é interessante notar que todos os partidos, independentemente de sua ideologia, têm um objetivo em comum – qual seja, o de angariar votos, já que sem votos não adquirem as cadeiras para a atuação parlamentar.

Assim, se durante praticamente todo o século XIX os partidos políticos eram chamados de partidos de notáveis, visto existirem apenas circunscritos aos Parlamentos e, portanto, não possuírem nenhum tipo de organização social fora deste – ou quando o tinham era apenas para o período eleitoral, ou seja, para a arregimentação de votos que levassem à vitória, mas sempre de maneira circunscrita e limitada (MIRANDA, 2007, p. 23; OPPO, 1998, p. 900) –, o fim deste século e o início do século XX viram o surgimento daquilo que é conhecido como partidos de massa, ou seja, partidos políticos cujos candidatos tinham posição social, estilo de vida e preocupações semelhantes às dos operários (MANIN, 2002, p. 195-6) – vistos na ocasião como o “eleitorado a ser conquistado”.

Com os partidos de massa gradativamente passou-se do voto personalizado para o voto partidarizado, ou seja, o cidadão deixou de votar diretamente na pessoa do candidato como fazia no período do governo representativo para votar no partido do candidato no momento em que se estabeleceu a democracia partidária, sendo o partido o representante visível da ideologia política sustentada pelo eleitor.

Pelo exposto fica claro que os partidos políticos, durante o século XX principalmente, transformaram-se nas principais e mais importantes instituições políticas da democracia contemporânea. Compete ao partido político não apenas representar o cidadão no Parlamento mas também, e acima de tudo, ser a instituição responsável por organizar as demandas sociais, expressas por meio da opinião pública, de maneira a transformá-las em bandeiras ideológicas que serão posteriormente expostas por meio de um programa político a ser escrutinado pelo cidadão por meio do voto.



Estabelecem-se assim os seguintes critérios como verdadeiras traves mestras para que um regime político-jurídico possa ser considerado como democrático:

  • O cidadão é o titular da soberania, mas esta é exercida por representantes eleitos regularmente;
  • Eleições regulares, voto secreto, competição entre facções e/ou partidos e governo majoritário são as bases institucionais para criar a accountability daqueles que governam;
  • Os poderes do Estado devem ser impessoais, com separação de suas funções (poderes Executivo, Legislativo e Judiciário);
  • Deve existir total centralidade do constitucionalismo para garantir a liberdade do cidadão em relação ao tratamento arbitrário, bem como a igualdade perante a lei na forma de direitos (ou liberdades) civis e políticos, especialmente as liberdades de expressão, de associação, de voto e de crenças;
  • Devem existir grupos de interesse, além de partidos políticos (ao menos dois formalmente estabelecidos) competindo entre si (HELD, 2006, p. 78).

Por sua vez, o jurista italiano Norberto Bobbio (1998, p. 327) traz uma definição mais específica do que ele considera como um conjunto de regras de procedimento que define o grau de democraticidade de determinado regime político-jurídico. Tais regras são as seguintes:

  • O poder Legislativo deve ser composto por membros eleitos direta ou indiretamente pelo povo;
  • Junto ao poder Legislativo deve haver outras instituições com dirigentes eleitos, tais como órgãos da administração local ou o chefe de Estado;
  • Todos os cidadãos que tenham atingido a maioridade, sem distinção de raça, de religião, de censo e de sexo, devem ser eleitores;
  • Todos os eleitores devem ter voto igual;
  • Todos os eleitores devem ser livres em votar segundo a própria opinião formada o mais livremente possível – em outras palavras, é necessário haver liberdade de expressão, tanto do ponto de vista do eleitor quanto do ponto de vista do candidato;
  • Todos os eleitores devem ser livres também no sentido em que devem ser postos em condição de ter reais alternativas – ou seja, devem existir no mínimo dois partidos políticos para que o cidadão tenha liberdade de escolha;
  • Tanto para as eleições dos representantes como para as decisões do poder Legislativo vale o princípio da maioria numérica, podendo ser estabelecidas várias formas de maioria;
  • Nenhuma decisão tomada pela maioria deve limitar os direitos da minoria, de um modo especial o direito de tornar-se maioria, em paridade de condições;
  • O órgão do Governo deve gozar de confiança do Parlamento ou do chefe do poder Executivo, por sua vez, eleito pelo povo.

Vale destacar que tais regras não irão definir automaticamente se determinado regime é ou não democrático. Para Bobbio tais regras definem se um regime é mais ou menos democrático considerando-se a presença ou ausência de tais regras no ordenamento jurídico de determinado Estado. O autor afirma também que a ideia de democracia é tão complexa – sendo possível falar-se em democracia liberal, democracia social(ista) e democracia elitista (BOBBIO, 1998, p. 323-6) – que não se pode nem mesmo identificar quantas regras são necessárias para que um regime seja considerado democrático; a única certeza que se tem é que um regime que não possuir nenhuma das regras com certeza não é uma democracia (BOBBIO, 1998, p. 327).



Contudo, a despeito da clareza acerca deste conjunto de regras de procedimento, é importante destacar que a democracia não pode apenas ser apresentada sob o ponto de vista formal. Por outras palavras, não se pode considerar que determinado regime jurídico-político é ou não democrático apenas pela presença ou ausência de tais regras em seu ordenamento jurídico; outro aspecto relevante a ser considerado na definição contemporânea de democracia diz respeito ao seu entendimento como um princípio estruturante do Estado moderno a partir do momento em que tais regras são aplicadas e são efetivamente concretizadas na vida cotidiana do cidadão.

Nesta perspectiva, a democracia substancial tem relação direta com o conteúdo das normas jurídicas existentes em determinada Constituição. Este conteúdo está diretamente relacionado aos fins que um sistema político-jurídico democrático objetiva concretizar, nomeadamente a busca pela igualdade – jurídica, social e econômica – entre os cidadãos (STRECK; MORAIS, 2013, p. 535). Nesta perspectiva substancial um regime democrático se inicia com este conjunto de regras, mas o mesmo não pode ser considerado um ponto de chegada: para além do conjunto de regras – ou de como decidir – é necessário também que seja analisado o que está sendo decidido, especialmente levando-se em consideração as relações de poder entre os indivíduos, já que eventualmente tais regras podem estar presentes e mesmo assim o regime jurídico-político poderá não ser democrático.

Como se pode perceber por esta breve síntese, o conceito de democracia possui ao menos dois elementos, o formal e o substancial. O aspecto formal está garantido quando da presença das regras apresentadas por Bobbio no ordenamento jurídico de determinado Estado. Já o aspecto substancial está diretamente relacionado à efetividade concreta de tais regras na vida do cidadão tendo-se em vista o fim último de garantia da igualdade na sociedade – ou, ao menos, de uma gradual e constante diminuição da desigualdade. E estas duas faces da democracia pressupõem, em última instância, o envolvimento e a participação efetiva do cidadão, especialmente por este ser o titular do poder político.

Referências:

BOBBIO, Norberto. Verbete “democracia”. In: BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de política. Trad. Carmen C. Varriale et al.; coord. trad. João Ferreira; rev. geral João Ferreira e Luís Guerreiro Pinto Cacais. 11 ed. Brasília: UnB, 1998.

HELD, David. Models of democracy. 3 ed. Cambridge: Polity Press, 2006.

MANIN, Bernard. The principles of representative government. Nova Iorque: Cambridge University Press, 2002.

MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional. Vol. II. Tomo III. Estrutura constitucional do Estado. Coimbra: Coimbra, 2014.

______. ______. Tomo VII. Estrutura constitucional da democracia. Coimbra: Coimbra, 2007.

OPPO, Anna. Verbete “partidos políticos”. In: BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de política. Trad. Carmen C. Varriale et al.; coord. trad. João Ferreira; rev. geral João Ferreira e Luís Guerreiro Pinto Cacais. 11 ed. Brasília: UnB, 1998.

STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, José Luís Bolzan de. Estado democrático de Direito. In: CANOTILHO, J. J. Gomes; MENDES, Gilmar F.; SARLET, Ingo W.; STRECK, Lenio L. (Coords.). Comentários à Constituição do Brasil. Edição digital. São Paulo:Saraiva/Almedina, 2013.

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