John Locke e o Estado liberal


Olá, pessoal! Hoje vou falar sobre John Locke e o Estado liberal – ou melhor, sobre as ideias de John Locke e sua importância para o surgimento de um Estado de cariz liberal.

Locke é um autor inglês, assim como Hobbes. Os dois foram contemporâneos, ainda que Locke tenha nascido quando Hobbes já estava chegando ao fim de sua vida. E assim como Hobbes, Locke também se utilizou da ideia do contratualismo para explicar o surgimento do Estado.

Porém, diferentemente de Hobbes, Locke não defende um estado autoritário. Enquanto Hobbes acreditava na necessidade de um Estado controlador, Locke defendia um Estado liberal. E aí você pode se perguntar: se ambos partiam da mesma premissa, como isso é possível?

Dê uma olhadinha no texto logo abaixo. Nele você encontrará a resposta 🙂



John Locke e a defesa do Estado liberal

John Locke e o Estado liberalO final do século XVII trouxe, também na Inglaterra, outro autor que é fundamental para o entendimento teórico-filosófico sobre o surgimento do Estado: John Locke. Filiando-se à escola do jusnaturalismo, assim como Hobbes, Locke irá fundamentar sua teoria do contrato social com base na existência de direitos naturais intrínsecos ao homem. Contudo, se Hobbes buscou garantir a segurança por meio de um Estado de cariz autoritário, Locke irá propor a garantia da liberdade individual pela atuação de um Estado com contornos liberais.

A teoria de Locke adquire, em um primeiro momento, os mesmos traços do pensamento hobbesiano. Significa dizer que Locke, assim como Hobbes antes dele, irá identificar o estado de natureza como a situação inicial em que o homem se encontra, ainda que, contrariamente ao seu predecessor, considere tal situação como real e historicamente determinada (MELO, 1999, p. 84). Nesta perspectiva este estado de natureza lockeano difere profundamente daquele proposto por Hobbes: enquanto para este verifica-se a guerra de todos contra todos, para Locke o estado de natureza é uma situação idílica, em que os homens vivem em paz e harmonia sem a presença de conflitos entre si.

Inicialmente pode parecer contraditório que ambos os autores falam sobre o estado de natureza identificando neste as mesmas características – a plena liberdade e a plena igualdade entre os homens (JORGE, 2009, p. 91). Poder-se-ia perguntar: então, qual a diferença entre os dois? E mais que isso, por quê para Hobbes tais características levam à guerra de todos contra todos e para Locke levam a uma boa vida no estado de natureza?

Para além do entendimento de Locke de que a liberdade é limitada no estado de natureza – e não ilimitada, como era para Hobbes (JORGE, 2009, p. 91-2) –, Locke parte da premissa de que o estado de natureza está regulado pela razão. O conceito de razão para Locke, contudo, é também diferente do conceito de razão para Hobbes: enquanto para este é racional que um homem ataque outro porque o único direito natural que ele tem é o direito à vida, devendo defendê-la acima de tudo, para Locke a razão será utilizada para a defesa de todos os direitos naturais que o homem possui no estado de natureza – quais sejam, o direito à vida, o direito à liberdade e o direito à propriedade privada.



Ou seja, enquanto que no estado de natureza hobbesiano a lógica irá fazer com que o homem avance sobre os demais por considerá-los como concorrentes, no estado de natureza lockeano o que se vê é exatamente o oposto, isto é, as pessoas não irão lutar umas contra as outras porque “a natureza autorizou cada um a proteger e conservar o inocente, reprimindo os que lhe fazem mal” (CHEVALLIER, 1999, p. 108). E assim o é porque para Locke existe já no estado de natureza o direito à propriedade reconhecido por todos, o que não existe no pensamento de Hobbes (MELO, 1999, p. 85; JORGE, 2009, p. 98). Portanto, existiria já nesta etapa a ideia de que cada homem irá respeitar o direito natural à propriedade dos outros homens, evitando-se assim o conflito generalizado que Hobbes acreditava existir no estado de natureza. Para Locke, portanto, estado de natureza não é sinônimo de estado de guerra.

Desta forma, a passagem do estado de natureza para o estado de sociedade por meio de um contrato social na visão de Locke não tem por objetivo sanar o medo da morte, como em Hobbes: o Estado é criado para que os homens pudessem viver ainda melhor do que viviam no estado de natureza. E isto porque, apesar de viverem bem no estado de natureza, existiam ali alguns inconvenientes, nomeadamente a falta de leis estabelecidas, conhecidas, recebidas e aprovadas por meio de comum consentimento, bem como a ausência de juízes reconhecidamente imparciais que julgassem conforme leis previamente estabelecidas – lembrando-nos Locke que tais inconvenientes poderiam vir a ser agravados com o passar do tempo (CHEVALLIER, 1999, p. 109-10).

Daí a necessidade de passagem para o estado de sociedade: apenas aqui existiria efetivamente um poder coercitivo legítimo, reconhecido por todos, que fosse capaz de garantir a execução dos juízos proferidos. E é aqui que se percebe um dos elementos centrais do pensamento de Locke: o estado de sociedade só seria atingido – e só iria se manter como tal posteriormente – se houvesse o consentimento dos homens (MELO, 1999, p. 86). Há aqui uma diferença fundamental em relação a Hobbes: se por um lado este autor apresentava a ideia de consentimento no processo de formação do Estado, dispensava este mesmo consentimento no momento de atuação do Estado – daí este ser absolutista. Locke, porém, enxergava a necessidade do consentimento nos dois momentos, sendo esta a garantia da liberdade individual após a criação do Estado. Só assim, pelo consentimento, a liberdade originalmente existente no estado de natureza seria mantida também no estado de sociedade (CHEVALLIER, 1999, p. 110).

Para além da ênfase no consentimento, Locke propõe outro mecanismo para evitar que o poder coercitivo do Estado se transformasse em um poder absoluto: a distinção entre as funções do Estado. O argumento de Locke fundamenta-se na dedução. No estado de natureza todo homem tem o direito de fazer tudo que julga correto – ou seja, tem o direito de legislar; ao mesmo tempo, tem também o direito de punir, sendo este inclusive um dos inconvenientes existentes no estado de natureza caso algum dos homens decidisse abusar de tal direito.



Ao criarem o contrato social e darem origem ao Estado, este herda dos homens os mesmos dois direitos, que são refletidos em dois poderes: “um é o legislativo, que determina como se devem empregar as forças de um Estado para a conservação da sociedade e de seus membros. O outro é o executivo, que assegura no interior a execução das leis positivas” (CHEVALLIER, 1999, p. 112, grifo no original). E identifica ainda Locke que o poder federativo será o responsável pelos tratados de paz e pela guerra. Destaca-se que Locke propõe que tais poderes estejam em mãos distintas; caso contrário o que existiria na prática seria um governo absoluto, ainda que formalmente separado em dois, dada a tentação que todos têm de controlar completamente o poder político.

Locke acrescenta também que o poder Legislativo é superior ao poder Executivo (JORGE, 2009, p. 111), visto ser o primeiro “a alma do corpo político” (CHEVALLIER, 1999, p. 113, grifo no original). Não se deduz daí, contudo, que o poder Executivo seja um mero cumpridor de leis: ele também tem iniciativa, mas apenas naquelas situações em que exija-se uma ação para o bem da sociedade cuja legislação para sua concretização nano tenha sido prevista pelo poder Legislativo. Assim se verifica que Locke não propõe, portanto, uma espécie de absolutismo do poder Legislativo.

É importante destacar também que para Locke os direitos naturais dos homens são inalienáveis. Significa dizer que “os direitos naturais, longe de constituírem o objeto de uma renúncia total pelo contrato original, longe de desaparecerem, varridos pela soberania no estado de sociedade, ao contrário subsistem. E subsistem para fundar, precisamente, a liberdade” (CHEVALLIER, 1999, p. 108).

Desta forma, diferentemente de Hobbes, que propunha a transferência dos direitos naturais do homem ao Estado quando da criação deste, Locke indica uma espécie de cessão temporária dos direitos naturais dos homens: tais direitos “não desaparecem em consequência do consentimento pela sociedade; ao contrário, subsistem. E subsistem para limitar o poder social e fundar a liberdade” (CHEVALLIER, 1999, p. 114, grifo nosso).



Daí a perspectiva liberal do Estado para Locke: a atuação estatal, tanto no âmbito do poder Legislativo quando no do poder Executivo, nunca deve ir para além do que exige o bem público, por um lado, e menos ainda deve avançar sobre as liberdades individuais dos homens, já que estes retêm em suas mãos tal direito natural – não possuindo o Estado o direito de retirar dos homens tais direitos. Aceitar tal situação seria ilógico na visão de Locke.

É por tal motivo, portanto, que se o Estado não cumprir a função para a qual foi criado – ou seja, se violar a lei estabelecida e/ou atentar contra a propriedade (MELO, 1999, p. 87) – os homens não retornam ao estado de natureza, como o seria no caso de Hobbes: “se os governantes, seja quais forem, Parlamento ou rei, agem de maneira contrária ao fim – o bem público –, fim para o qual haviam recebido a autoridade, o povo retira sua confiança, retira o depósito; retoma a soberania inicial para confiá-la a quem lhe aprouver” (CHEVALLIER, 1999, p. 115). E isto é possível porque o povo, repita-se, continua detentor de seus direitos naturais – vale dizer, o povo continua a ser o detentor verdadeiro do poder soberano, não o Estado: para Locke o contrato social não é, à diferença de Hobbes, um contrato de submissão do homem à vontade do Estado, mas sim o contrário.

Fecha-se o raciocínio da teoria lockeana com o direito de insurreição, ou seja, com a possibilidade que o homem tem inclusive de empregar a força caso o governo não cumpra a sua parte no contrato, por um lado, ou decida, por outro, recorrer à força para subjugar o indivíduo. Significa dizer que o homem, se verificar que o governo não garante o bem público, poderá em última instância substituí-lo por outrem, mantendo-se estável, contudo, a instituição Estado, sem necessariamente haver o retorno ao estado de natureza.

É este, em síntese, o raciocínio de Locke que estabelecerá “as bases da democracia liberal, de essência individualista, cujas Declarações de Direitos – direitos naturais, inalienáveis e imprescritíveis – das colônias americanas insurretas, depois da França revolucionária, constituiriam a magna carta” (CHEVALLIER, 1999, p. 117). Por outras palavras, significa dizer que o pensamento de Locke fundamenta parte importante da estrutura constitucional dos Estados na atualidade, ainda que com adaptações e acréscimos.



Referências:

CHEVALLIER, Jean-Jacques. As grandes obras políticas de Maquiavel a nossos dias. 8ª ed. Rio de Janeiro: Agir, 1999.

JORGE, Vladimyr Lombardo. John Locke: lei e propriedade. In: FERREIRA, Lier Pires; GUANABARA, Ricardo; JORGE, Vladimyr Lombardo (orgs.). Curso de ciência política. Rio de Janeiro: Elsevier, 2009.

MELO, Leonel Itaussu Almeida. John Locke e o individualismo liberal. In: WEFFORT, Francisco C. (org.). Os clássicos da política. 1.º vol. 11ª ed. São Paulo: Ática, 1999.


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Um abraço a todos e até a próxima!

Prof. Matheus Passos

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