Sarney é o culpado?

Como todos do Brasil devem saber, as últimas semanas têm sido pródigas no que diz respeito ao surgimento de denúncias e mais denúncias no nosso Senado Federal. A grande maioria das denúncias tem convergido para um senador apenas: o senador José Sarney, do PMDB do Amapá, atual presidente daquela Casa.

O espectador desatento, influenciado pela mídia – que adora ver “sangue” –, logo reconhece que a origem de todos os males da política brasileira atual recaem sobre o Senador. Afinal de contas, foi ele quem disse que não sabia que recebia R$ 3.800,00 de auxílio-moradia. Foi ele quem nomeou e bancou a presença do ex-diretor do Senado, Agaciel Maia. Foi ele quem exonerou Agaciel e nomeou o novo diretor do Senado, também já exonerado. Foi ele o responsável pelos atos secretos. Foi ele quem indicou parentes – filhos, netos, sobrinhos… – para preencher diversos cargos na Casa. A origem dos males, portanto, está no senador.

Da mesma forma, a mídia tem apresentado – às vezes explicitamente, às vezes sutilmente – a ideia de que basta remover Sarney da presidência do Senado que tudo se resolverá. É nesse sentido que ontem três partidos – o DEM, o PSDB e o PDT – entraram com pedido junto à Mesa Diretora do Senado solicitando o licenciamento do Senador, objetivando garantir a lisura dos processos investigativos que buscam solucionar todos os problemas.

Por outro lado, o PT, após ter inicialmente vacilado a respeito do assunto, resolveu apoiar a licença do Senador José Sarney, desde que a mesma se realize com a “bênção” de Lula “em prol da governabilidade”. Em discurso no plenário do Senado hoje, o Senador Aloízio Mercadante ressaltou que o PT não está pedindo a renúncia de Sarney, mas apenas seu afastamento para que sejam possibilitadas as condições necessárias à investigação.

Tendo em vista todo o ambiente descrito acima, surge a pergunta: Sarney é realmente o culpado? Sarney é o único culpado, como a mídia tenta mostrar? O afastamento (seja por licença, seja por renúncia) de Sarney é suficiente para que todos os problemas sejam resolvidos e para que a “normalidade” retorne ao Senado? Que “normalidade” é esta?

Uma análise mais aprofundada mostra que aqueles que acreditam que Sarney é o único responsável estão equivocados. E vou mais além: o problema não está unicamente nas coligações partidárias feitas dentro do Congresso Nacional – especificamente entre PT e PMDB, de um lado, e PSDB e DEM, de outro. Limitando-me apenas a aspectos políticos – e não culturais, como nosso patrimonialismo arraigado –, o problema dos mandos e desmandos na política brasileira são muito mais profundos e dizem respeito, principalmente, à forma como estão estruturados três sistemas políticos no Brasil: o sistema partidário, o sistema eleitoral e as relações entre os poderes Executivo e Legislativo.

No que diz respeito ao nosso sistema partidário, o principal problema diz respeito ao número excessivo de partidos políticos e à ausência de cláusula de barreira. É claro que aqueles que se dizem mais “democratas” argumentarão que é fundamental haver liberdade para a formação de diversos partidos políticos, que os grupos que conseguem se organizar para formar um partido devem ser respeitados e representados, que a cláusula de barreira priva as minorias de se expressarem… Os argumentos nesse sentido são inúmeros. Entretanto, todo aquele que compreende de política sabe que o sistema partidário brasileiro, multipartidário por excelência, não consegue trazer estabilidade à política como seria desejável. Coloquem-se no lugar do presidente Lula: como negociar com 13 partidos – número que corresponde àqueles que compõem a base aliada no Congresso Nacional? Como é possível organizar 13 grupos ideologicamente distintos – e “radicais”, no sentido de nem sempre abrirem mão de seus objetivos políticos – objetivando obter um corpo político coeso, que siga a mesma linha que o governo deseja? É inegável o fato de que a existência de tantos partidos favorece ainda mais a corrupção – implicando em aprovações de emendas no Orçamento, por exemplo, ou em trocas políticas de apoio parlamentar por ministérios, secretarias, autarquias ou empresas estatais. Isto corresponde ao loteamento do aparelho estatal em nome de uma pseudo-governabilidade – que traz mais prejuízos que benefícios não apenas ao cidadão “comum” como também à própria estrutura do aparelho estatal.

Em segundo lugar está o sistema eleitoral brasileiro – criador de “brechas” que, sem dúvida, levam à corrupção e ao abuso. No caso da Câmara dos Deputados, temos um sistema proporcional com lista aberta, que leva não apenas à falta de representatividade do cidadão – pois o voto dele é contado para o partido sem ele saber disso – mas, principalmente, às negociações vistas como fundamentais para que determinado candidato possa se filiar ao partido A ou B devido ao quociente eleitoral, objetivando aumentar suas chances de ser eleito. No caso do Senado, o sistema majoritário simples traz em seu bojo o problema dos suplentes – que não são eleitos e que, portanto, não têm legitimidade popular. Vejamos apenas o caso do DF: dos três senadores atuais, apenas um foi realmente eleito – os outros dois são suplentes. Como garantir a representatividade popular neste caso? Tal representatividade simplesmente deixa de existir, o que permite ao parlamentar se destacar da população que teoricamente representa, favorecendo, assim, maracutaias de todo e qualquer tipo – até mesmo porque, sem saber quem é o seu parlamentar, a população desanima, não cobra e abre ainda mais brechas para que o parlamentar se beneficie de sua posição.

Por fim, é fundamental destacar também a estrutura do presidencialismo brasileiro. Somos um dos pouquíssimos “presidencialismos de coalizão”, ou seja, aquele tipo de presidencialismo que depende de coalizões entre dois ou mais partidos políticos no poder Legislativo cujo objetivo é garantir uma maioria para o presidente da República. Ora, a partir do momento em que o presidente, para governar, depende do apoio de outro(s) partido(s) que não apenas o seu, a situação fica complicada – pois as coalizões nunca duram “para sempre”, o que faz com que os partidos membros da coalizão no poder Legislativo tenham bastante força na hora de negociar com o partido dominante do poder Executivo. É o caso típico atual: o PT, mesmo sabendo dos problemas ocasionados por José Sarney, que é do PMDB, recua e não “bate” tanto no senador, tendo em vista o fato de que, se assim o fizer, estará pondo em risco a coalizão que o sustenta dentro do Congresso Nacional.

O ser humano, desde seus primórdios, sempre precisou de símbolos, em todos os sentidos. É assim que surgiram heróis, deuses mitológicos, “super-homens” e toda espécie de pessoas que servissem de representação para as glórias ou os vícios dos “comuns”. Sarney se tornou um símbolo no momento: o símbolo da corrupção, o símbolo da roubalheira, o símbolo de tudo aquilo que o brasileiro não espera da classe política. Contudo, colocá-lo como o único responsável pelos males da política brasileira é um erro enorme, e acreditar que sua mera renúncia – seja à presidência do Senado, seja ao próprio mandato – poderá solucionar os problemas éticos da atual legislatura brasileira é ingenuidade sem par e desconhecimento completo da estrutura política brasileira.

(Obs.: houve uma ausência de postagens minhas por estar em semana de provas nas faculdades nas quais trabalho. Pretendo regularizar o fluxo a partir de hoje.)

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