Considerações sobre liberdade e igualdade (II)

(Continuação da postagem anterior.)

Ao longo de todo o curso de um desenvolvimento que chega até nossos dias, o processo de democratização, tal como se desenvolveu nos estados que hoje são chamados de democracias liberais, consiste em uma transformação mais quantitativa do que qualitativa do regime representativo. Nesse contexto histórico, a democracia não se apresenta como alternativa ao regime representativo, mas é o seu complemento.

Como conseqüência, é possível afirmar que se definiram primeiramente os princípios do liberalismo, e posteriormente somaram-se ao liberalismo os “princípios democráticos”, principalmente o de representação. A única exceção fica por conta do item “participação”, onde há diferenças entre a apatia defendida por Schumpeter e a democracia participativa defendida por Pateman (citados em CUNNINGHAM, 2002, p. 29). Além da participação, são considerados outros princípios da democracia liberal (CUNNINGHAM, 2002, p. 30-40):

  1. Igualdade – ainda que a maioria dos autores seja “(…) cética em sancionar mais do que igualdade política formal em nome da democracia liberal” (CUNNINGHAM, 2002, p. 30), ou seja, a igualdade, na democracia liberal, é a igualdade em poder participar de eleições e ter votos com o mesmo peso, independente de classe social, renda ou grau de instrução.
  2. A relação entre o sistema político democrático e o sistema econômico capitalista – alguns teóricos vêem a democracia inserida no liberalismo, enquanto outros vêem uma relação interativa entre democracia e liberalismo.
  3. Individualismo – talvez o principal pilar da democracia liberal, ou seja, o governo deve respeitar a liberdade dos indivíduos ao definir suas preferências, ao invés de forçá-los a ter determinados desejos.
  4. Liberdade e autonomia – o estado deveria permitir ao máximo possível que as pessoas ajam de acordo com suas preferências, ou que pelo menos tivessem liberdade e autonomia para rever seus objetivos continuamente e se decidir por ações que as auxiliassem a atingir tais objetivos.

Pode-se afirmar que todos os teóricos da democracia liberal concordam com: a) a democracia representativa, sendo os representantes eleitos de acordo com regras formais; b) a proteção estatal das liberdades civis e políticas dos indivíduos; e c) uma esfera privada livre de interferência estatal.

A temática da liberdade, oriunda do liberalismo político, é transformada em principal pilar da democracia liberal, e a essa temática é associada a ideia do capitalismo como o melhor sistema econômico que pode garantir a liberdade individual. Entre o estado e o cidadão deve haver um acordo que fixa claramente a cada uma das partes quais são suas obrigações: as regras da democracia liberal estão dispostas em leis, definidas e garantidas pelo estado. Essas regras, no entanto, são regras formais, pois se baseiam primordialmente na igualdade política existente entre os cidadãos. Tal igualdade política, sem dúvida, é importante, pois dá chance a todos os indivíduos de participar politicamente na tomada de decisões (ou, pelo menos, de participar em eleições).

A cidadania minimalista liberal é fundada sobre o importante princípio normativo de igualdade política, que requer a manutenção de igualdade de direitos políticos formais entre aqueles considerados como cidadãos. O princípio de ser dado a cada cidadão apenas um voto nas eleições deriva da crença de que nem a riqueza, nem o poder ou o status poderiam valer frente à lei, e nem no extremo exercício do poder político, as eleições. Esse princípio anti-aristocrático de igualdade legal e política é central para o minimalismo liberal. A cidadania igualitária não é um fim em si mesma, mas um instrumento essencial de proteção contra a opressão e a injustiça (CARTER; STOKES, 2002, p. 29).

No entanto, a forma como essa igualdade, influenciada pelo capitalismo e por questões econômicas, é usufruída pelos cidadãos é desconsiderada, o que leva à conclusão de que a igualdade é, necessariamente, formal. A democracia liberal não condena as opressões na esfera privada, já que seu âmbito oficial de atuação é a esfera pública (ou política): a democracia liberal não pode nem deve interferir nos problemas da esfera privada, pois se assim o fizer deixa de ser liberal. A esfera privada dos indivíduos deve ser coordenada pelos mesmos em situações de mercado, sendo esse último a única instituição capaz de satisfazer os desejos dos indivíduos de maneira eficiente. Alega-se que “(…) não apenas a intervenção não é necessária, mas também que o estado não é responsável pela perpetuação dos arranjos opressivos no mundo privado” (CUNNINGHAM, 2002, p. 70). A democracia liberal prioriza os direitos individuais em detrimento dos de grupo ou de classe, e ao mesmo tempo afirma ser incapaz de lutar por direitos universais, pois isto seria “insensibilidade” frente às diferenças entre grupos: o estado deve, por um lado, garantir a liberdade do indivíduo em atingir seus objetivos, e por outro deve trabalhar de forma isenta, como um mediador que faz com que a busca de soluções para os problemas individuais seja equilibrada entre os indivíduos que compõem determinada sociedade.

A ênfase da democracia liberal no individualismo e na liberdade do indivíduo frente ao poder do estado, entretanto, não se traduz em igualdade política real. Atualmente, todos (ou praticamente todos) têm o direito (e às vezes o dever) de participar politicamente nos fóruns legalmente estabelecidos para tal participação, tais como eleições, plebiscitos, referendos, leis de iniciativa popular etc., mas qualquer tentativa de participação além desses limites formalmente estabelecidos é vista como perigosa por ameaçar os valores políticos liberais. Essa ênfase, ao invés de enfatizar a igualdade, faz com que as democracias capitalistas preservem a igualdade política formal, mas neguem a igualdade política substantiva (CARTER; STOKES, 2002, p. 52, grifos no original). No entanto, essa igualdade política substantiva deve ser buscada, já que “[…] a desigualdade política substantiva é errada em princípio, e a desigualdade material é errada porque ela inibe a concretização desse ideal fundamental” – a expansão da participação política além da esfera do formal em direção à esfera do substantivo (CARTER; STOKES, 2002, p. 53, grifos no original). Ou, nas palavras de Stamatis (2001, p. 390), apenas se a esfera econômica for também democratizada será possível obter uma verdadeira democracia substantiva, com igualdade real entre os indivíduos.

A liberdade individual no campo econômico, defendida pela democracia liberal, leva ao surgimento de desigualdades no âmbito político, já que as pessoas irão buscar satisfazer suas necessidades individuais por meio da obtenção de bens e serviços no mercado. Essa desigualdade não se apresenta no voto dos cidadãos, o qual já está garantido e distribuído igualitariamente entre os mesmos, sem diferenciação por renda, idade, sexo, raça ou qualquer outro critério. Mas, de acordo com Carter e Stokes (2002, p. 54-5), quatro outros fatores dão aos mais ricos mais influência política na tomada de decisão, ainda que o voto tenha o mesmo peso para todos:

  1. Os mais ricos têm dinheiro para gastar em campanhas políticas e em lobby, o que faz com que suas demandas tenham mais probabilidade de serem aceitas e/ou aprovadas.
  2. Os mais ricos estão em uma melhor posição de barganha para atingir seus objetivos, já que as sociedades precisam dos recursos que estão nas mãos desses mais ricos.
  3. Os mais ricos controlam os principais ativos da sociedade, tanto em termos econômicos, políticos ou culturais, controlando a agenda do debate político devido à sua força econômica.
  4. Os mais ricos tendem a ser mais bem educados, o que faz com que possam tomar melhores decisões em relação ao seu interesse próprio e em relação à própria sociedade.

Se alguns têm um entendimento muito melhor sobre determinados assuntos do que outros, eles estão em uma melhor posição para exprimir seu voto em relação aos seus próprios interesses (e, por esse motivo, em votar altruisticamente pelos interesses dos outros), assim como são capazes de manipular o comportamento eleitoral de outros (CARTER; STOKES, 2002, p. 68).

(Continua na próxima postagem.)

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