Distinção necessária

Há uma diferença entre governo e Estado. Um é de grupo, o outro é de todos. Uma distinção teórica, porque o Estado é comandado pelo governo, ainda que nas democracias o primeiro tenha dose de autonomia em relação ao segundo.

No Brasil algumas iniciativas de garantir ao Estado certa independência diante do governo deram certo. O Banco Central, o Ministério Público, a Polícia Federal são exemplos. Outras deram muito errado. Um ícone do fracasso são as agências reguladoras.

Mas sempre resta a tensão. Agora mesmo a onda de acusações contra a Casa Civil desperta dois tipos de reação: no governo a ansiedade é sobre possíveis efeitos nas urnas, no Estado deve ser por apurar tudo tintim por tintim, e adotar as devidas providências.

Não é realista imaginar que faltando duas semanas para a eleição o governo esteja disposto a cortar ilimitadamente na própria carne para descobrir até onde chegaram os problemas na Casa Civil.

O Palácio do Planalto toca a bola de lado à espera do apito final do eleitor. De vez em quando alguém dá um bico para a arquibancada, pois o jogo é de campeonato. Que o diga a ex-ministra Erenice Guerra.

Mas é legítimo desejar que as instituições de Estado entrem em ação, e não há motivo para suspeitar de que não entrem. Ou de que já não tenham entrado.

Até por uma razão de ordem profilática. Se derrapou, são necessárias medidas para desestimular que volte a derrapar.

Os desdobramentos da investigação não se confundem com os resultados da eleição.

Eleição resolve um bom número de problemas, define quem vai sentar na cadeira e a turma que vai ocupar os cargos, mas não tem o efeito de interromper o processo político-institucional.

Será ruim se um eventual governo Dilma Rousseff, eleito em primeiro ou segundo turno, precisar carregar na largada um fardo desse tamanho.

Será triste se o eventual futuro governo já nascer refém da maioria parlamentar, antes mesmo da posse. Precisando entregar anéis e dedos para evitar CPIs.

E a eleição propriamente dita? Toda reta final embute turbulências, com a possibilidade de mudanças. Desta vez o quadro aponta alguma estabilidade em cima. A novidade é que Marina Silva mostra mais fôlego que Heloísa Helena e Cristovam Buarque quatro anos atrás.

A verde terá gás para fazer algo de diferente nas próximas duas semanas? Essa é a dúvida, além das indagações sobre o efeito na campanha de Dilma Rousseff das denúncias recentes.

Há variações sobre o que levou a eleição presidencial de quatro anos atrás ao segundo turno. Uns dizem que foram as fotos do dinheiro do chamado dossiê dos aloprados. Outros, a ausência de Luiz Inácio Lula da Silva no debate final do primeiro turno.

Mais provável que tenha sido uma combinação das duas coisas. Lula deu a impressão de fugir das explicações sobre um assunto grave. Isso incomodou uma parte do eleitorado dele. Que decidiu castigar o presidente-candidato. Aí veio o segundo turno, o PT conseguiu encurralar o PSDB politicamente e levar a eleição para casa.

Como venho escrevendo nos dias recentes, há situações em que o lero-lero da politicagem adquire outra dimensão, e a sociedade passa a prestar atenção e a pedir explicações. O governo tem mostrado nos últimos dias maior permeabilidade à pressão. O que é bom, mas talvez ainda não tenha vindo na dose suficiente.

Governo e oposição correm contra o relógio. Isso é uma parte do enredo. Há porém outra parte, que não obedece ao tic-tac do cronograma da Justiça Eleitoral.

Se governo e Estado interligam-se, não são a mesma coisa, como engatou esta coluna no começo.

(Original aqui.)

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