A boa judicialização

A decisão do STF estabelece um parâmetro, que ajuda a colocar certos limites aos apetites casuísticos. Um preço da vida em democracia é ter que respeitar os direitos do inimigo. Como corrigir os problemas da Ficha Limpa?

Para o meu gosto, estreou bem o ministro Luiz Fux. Julgou com independência. Foi pelo menos o que pareceu. Não jogou para a plateia na estreia. Não temeu desempatar, para o lado menos popular, uma votação difícil.

Em geral, os apelos para que o Supremo Tribunal Federal siga cegamente a opinião pública partem dos que concordam com a opinião pública. É natural e compreensível. Problema seria se o STF aceitasse anular-se diante dela.

Não que os ministros divergentes no julgamento da Ficha Limpa tenham, por divergir, cedido à pressão. Cada um votou como achava que devia votar. Aliás, já carregavam antes mesmo da quarta-feira os ônus e os bônus da sessão que, meses atrás, terminou em impasse.

Mas agora o peso estava todo sobre Fux, o do desempate.

A Ficha Limpa deixou de valer para 2010 por um motivo razoável. O STF considerou que a lei tinha mudado a regra eleitoral sem respeitar o prazo regulamentar.

A decisão do STF estabelece um parâmetro, que ajuda a colocar certos limites aos apetites casuísticos.

O recurso à Justiça em temas político-partidários recebe muitos ataques. Ganhou até uma expressão própria. É a “judicialização”. O sentido é pejorativo.

Mas o que é judicialização, na essência? É preservar uma instância de recurso para proteger a democracia quando a maioria política tenta exorbitar. Saudável.

A maioria pode muito, mas não deve poder tudo. Não pode, por exemplo, liquidar direitos da minoria.

E a Ficha Limpa? Uma boa ideia, mas cuja execução atropelou certas cláusulas do estado de direito.

Tanto que os defensores da aplicação imediata precisaram pegar um atalho argumentativo, ao dizer que a lei não é para punir, é só para definir critérios de elegibilidade.

Um argumento complicado. Se o sujeito tem carreira política, impedi-lo de se candidatar é uma punição. Além disso, todo o debate na sociedade e na opinião pública foi conduzido com viés punitivo.

A Ficha Limpa é boa mas tem problemas. O mais grave, na minha opinião, é a lei retroagir.

Um exemplo são os políticos que renunciaram para não enfrentar processo de cassação.

Não existe crime sem lei anterior que defina o ato como criminoso. Ninguém pode ser punido, com base numa certa lei, pelo que fez quando a dita cuja ainda não vigorava.

O sujeito ameaçado de cassação tem o direito de decidir se enfrenta ou não o processo político. Na hora de resolver se vai renunciar ou enfrentar, tem o direito de saber as consequências de cada decisão.

Se a renúncia vai significar inelegibilidade automática, é razoável que o acusado prefira enfrentar o processo.

Ou seja, não há como declarar inelegível com base na Ficha Limpa, por causa da renúncia, o sujeito que renunciou ao mandato antes de a Ficha Limpa ser sancionada.

Essa interpretação pode beneficiar X, ou Y? Paciência. Um preço da vida em democracia é ter que respeitar os direitos do inimigo.

E como corrigir os problemas da Ficha Limpa? Um caminho seria deixar o STF decidir caso a caso, quando provocado. Outra possibilidade é o próprio Congresso ajustar.

Até para evitar que os defeitos de um bom projeto acabem por inviabilizar a coisa.

(Original aqui.)

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