Esclarecimentos sobre o voto proporcional (1ª parte)

O indivíduo olha para o resultado das eleições e reclama, inconformado: “O candidato A teve 10 mil votos, mas perdeu, enquanto o candidato B teve 2 mil votos e foi eleito. Isto é um absurdo!” Tal reclamação tem sentido?

Sim e não. O indivíduo tem razão porque do ponto de vista do “eleitor comum”, ou seja, daquele que não tem conhecimento sobre o sistema eleitoral brasileiro (e infelizmente talvez estes sejam a maioria dos cidadãos brasileiros), acredita-se que “quem tem mais voto ganha” – é a lógica do sistema majoritário, que é bem fácil de compreender. Então é lógico que se torna um “absurdo” ver o indivíduo que teve 10 mil votos não ser eleito, enquanto o outro, com 2 mil votos, ser eleito.

Porém, esta confusão acontece porque poucos têm conhecimento a respeito do sistema eleitoral brasileiro. Vamos, então, às explicações sobre o sistema proporcional. Antes, porém, de explicar as peculiaridades deste sistema é necessário fazer algumas considerações. A primeira delas é que o entendimento deste sistema passa pela compreensão de que nós não votamos em candidatos, mas sim em partidos políticos. Quem representa o povo (lembrem-se de que o poder Legislativo, mais especificamente as Câmaras – Federal, Estaduais e Distrital – tem como função representar o povo) são os partidos. Vivemos, portanto, naquilo que se chama de democracia representativa partidária, ou seja, aquela democracia que, para “funcionar”, precisa de partidos. Veja-se o que diz a Constituição Federal, em seu art. 14, § 3º, inciso V:

Art. 14. A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante:

[…]

3º São condições de elegibilidade, na forma da lei:

[…]

V – a filiação partidária;

Relembrando: por elegibilidade entende-se a capacidade eleitoral passiva de todos os cidadãos, ou seja, é a possibilidade juridicamente definida de o cidadão pleitear determinados mandatos políticos mediante eleição desde que preenchidos certos pré-requisitos. Como se percebe com base no exposto acima, um dos pré-requisitos constitucionais para que alguém possa se candidatar é ser filiado a um partido político.

Destaca-se também, em consonância com a situação acima delineada, a Resolução nº 22.610/2007 do Tribunal Superior Eleitoral. Esta Resolução trata de questão referente à fidelidade partidária, qual seja, a de que se um parlamentar trocar de partido no meio de seu mandato poderá perder o mesmo, ainda que existam algumas exceções. O que se depreende de tal Resolução é a confirmação da ideia de que a vaga parlamentar é antes e acima de tudo do partido político, antes mesmo de ser vinculada ao parlamentar eleito pelo povo. Resta ainda o comentário do Ministro Gilmar Mendes feito no livro A Constituição e o Supremo (2011. p. 649): “[…] A jurisprudência, tanto do TSE (Consulta 1.398), como do STF (MS 26.602, MS 26.603 e MS 26.604), é firme no sentido de que o mandato parlamentar conquistado no sistema eleitoral proporcional também pertence ao partido político. […]”. Destaca-se ainda outro trecho do mesmo livro acima citado, desta vez nas palavras do Ministro Joaquim Barbosa (p. 650, grifo nosso):

No sistema que acolhe – como se dá no Brasil desde a Constituição de 1934 – a representação proporcional para a eleição de deputados e vereadores, o eleitor exerce a sua liberdade de escolha apenas entre os candidatos registrados pelo partido político, sendo eles, portanto, seguidores necessários do programa partidário de sua opção. O destinatário do voto é o partido político viabilizador da candidatura por ele oferecida. O eleito vincula-se, necessariamente, a determinado partido político e tem em seu programa e ideário o norte de sua atuação, a ele se subordinando por força de lei (art. 24 da Lei 9.096/1995).

Destacam-se também as palavras da Ministra Carmem Lúcia à pág. 4 do Agravo Regimental no Recurso Especial Eleitoral nº 2243-58. 2010.6.18.0000 – Classe 32 – Teresina – Piauí: “[…] o sistema eleitoral vigente não prevê candidaturas avulsas desvinculadas de partido, sendo possível concorrer aos cargos eletivos somente os filiados que tiverem sido escolhidos em convenção partidária, nos termos dos arts. 7º ao 9º da Lei nº 9.504/97.”

Assim, resta claro que a vaga parlamentar é do partido político – logicamente, votamos no partido político e não no candidato que se apresenta como tal para a população. É o entendimento desta particularidade – votamos no partido – que sustenta, e ao mesmo tempo explica, todos os desdobramentos que o sistema proporcional causa ao nosso país, conforme será mostrado adiante.

A segunda consideração que deve ser feita diz respeito aos conceitos de quociente eleitoral e de quociente partidário. O quociente eleitoral corresponde ao número mínimo de votos que um partido precisa ter para ter direito a uma vaga na eleição proporcional à qual está concorrendo. Já o quociente partidário corresponde ao número de vagas às quais cada partido tem direito após a realização das eleições. Destaca-se que estes quocientes sempre são calculados após a eleição, e não antes. O número total de votos que cada partido obtém corresponde ao somatório do número de votos que seus respectivos candidatos obtiveram, somando-se a estes ainda os votos de legenda, expressão utilizada para identificar o voto direto no partido.

Estas regras estão definidas na Lei nº 4.737/65, ou seja, no Código Eleitoral Brasileiro. O quociente eleitoral está definido no art. 106: “Determina-se o quociente eleitoral dividindo-se o número de votos válidos apurados pelo de lugares a preencher em cada circunscrição eleitoral, desprezada a fração se igual ou inferior a meio, equivalente a um, se superior.” Já o quociente partidário está definido no art. 107 desta mesma lei: “Determina-se para cada Partido ou coligação o quociente partidário, dividindo-se pelo quociente eleitoral o número de votos válidos dados sob a mesma legenda ou coligação de legendas, desprezada a fração.”

Assim, imaginemos que em determinada eleição para vereador o quociente eleitoral seja de 2 mil votos. O que isto significa? Significa que qualquer partido político que tiver lançado candidatos a esta eleição terá direito à eleição de um vereador a cada 2 mil votos válidos obtidos. Suponhamos que em uma eleição o partido “A” tenha lançado 5 candidatos, que obtiveram o seguinte resultado:

  • Candidato A.1: 701 votos;
  • Candidato A.2: 800 votos;
  • Candidato A.3: 850 votos;
  • Candidato A.4: 750 votos;
  • Candidato A.5: 900 votos;
  • Total de votos do partido A: 4.001 votos.

Já o partido B lançou 4 candidatos, que obtiveram a seguinte votação individual cada um:

  • Candidato B.1: 750 votos;
  • Candidato B.2: 950 votos;
  • Candidato B.3: 1.100 votos;
  • Candidato B.4: 1.199 votos;
  • Total de votos do partido B: 3.999 votos

Neste exemplo, aplicando-se o que está no art. 107 citado anteriormente, o partido “A”, com 4.001 votos, tem direito a duas vagas (seu quociente partidário), porque neste exemplo o quociente eleitoral é de 2 mil votos. Portanto, em relação ao partido “A” tem-se 4.001 ÷ 2.000 = 2,0005. Já o partido B tem direito a uma única vaga, pois teve 3.999 votos (3.999 ÷ 2.000 = 1,9995).

E quem serão os eleitos de cada partido? A resposta está no art. 108 da Lei nº 4.737/64: “Estarão eleitos tantos candidatos registrados por um Partido ou coligação quantos o respectivo quociente partidário indicar, na ordem da votação nominal que cada um tenha recebido.” Significa dizer que o partido “A” tem direito a duas vagas e estariam eleitos os candidatos A.5 e A.3 porque foram os mais votados dentro do partido “A”, respectivamente com 900 e 850 votos; do partido “B”, que tem direito a apenas uma vaga, estaria eleito o candidato B.4, com 1.199 votos.

Lembre-se do exemplo dado no capítulo anterior, aquele do cidadão que iria votar no candidato de número 9876. Ao digitar este número e apertar o botão “confirma”, o cidadão, em primeiro lugar, estava dando seu voto ao partido de número 98 e com seu voto contribuiu para o número total de votos do partido. Em seguida o cidadão direcionou seu voto ao candidato de número 76. É este voto que irá classificar os candidatos dentro da lista de candidatos lançados pelo partido político na eleição. É por este motivo que, no exemplo acima, o candidato A.5 ficou à frente do candidato A.3 – pois teve mais votos populares. É o que se chama de “lista aberta” no sistema eleitoral brasileiro.

Desse exemplo simples já se retira uma conclusão a respeito do sistema proporcional: nem sempre os candidatos com mais votos serão eleitos. Vejam os candidatos B.3 e B.2, respectivamente com 1.100 votos e 950 votos. Eles têm individualmente mais votos que qualquer um dos candidatos do partido “A”, mas eles não estão eleitos porque o que importa, em um primeiro momento, é o número de votos do partido e não o número de votos do candidato, já que os quocientes (eleitoral e partidário) são calculados tendo-se como base o número de votos do partido. É por este motivo que o cidadão comum, que desconhece este sistema, tem a ideia de que “o candidato com menos votos foi eleito, e isto é injusto”. Na verdade os cálculos são feitos tendo-se em mente o número de votos do partido e não o do candidato. Assim, um candidato bem votado, mas registrado por um partido pequeno, com poucos votos, pode não vir a ser eleito.

A seguir será dado mais um exemplo para que o entendimento a respeito do sistema proporcional e do cálculo das vagas parlamentares fique claro. Em seguida serão apresentadas algumas consequências deste sistema eleitoral à política brasileira.

Como explicado anteriormente, é necessário ter em mente que o voto é contado para o partido, não para o candidato, e que existem dois elementos que definem o resultado de uma eleição proporcional, que são o quociente eleitoral e o quociente partidário. Como estes números são calculados? Volte-se aos arts. 106 e 107 do Código Eleitoral Brasileiro:

Art. 106. Determina-se o quociente eleitoral dividindo-se o número de votos válidos apurados pelo de lugares a preencher em cada circunscrição eleitoral, desprezada a fração se igual ou inferior a meio, equivalente a um, se superior.

Art. 107. Determina-se para cada Partido ou coligação o quociente partidário, dividindo-se pelo quociente eleitoral o número de votos válidos dados sob a mesma legenda ou coligação de legendas, desprezada a fração.

Com base nestes artigos da legislação eleitoral (e outros que serão posteriormente citados), será analisada a seguir uma situação real que ocorreu em determinado município paulista em 2004. O exemplo se fundamenta na eleição de vereadores, mas a lógica é exatamente a mesma para os demais cargos eleitos pelo sistema proporcional.

No exemplo em questão tem-se a distribuição de 17 cadeiras (ou seja, vagas) para vereadores em determinado município paulista. Na eleição compareceram 50.037 eleitores, sendo que 883 votos foram em branco e 2.832 foram votos nulos. Com base nestes números, como calcular o resultado das eleições? Quais partidos receberam quantas vagas? Seguindo o exemplo, temos o seguinte número de votos dados a cada partido político:

  • Partido A: 15.992 votos;
  • Partido B: 12.811 votos;
  • Partido C: 7.025 votos;
  • Partido D: 6.144 votos;
  • Partido E: 2.237 votos;
  • Partido F: 2.113 votos.

Lembre-se de que o total de votos de cada partido é obtido por meio do somatório do número de votos que cada candidato de cada partido obteve, e ainda os votos de legenda.

Primeiro de tudo, é necessário se recordar que votos em branco e votos nulos são considerados como inválidos. Basta nos recordarmos do que afirma o art. 5º da Lei nº 9.504/97: “Nas eleições proporcionais, contam-se como válidos apenas os votos dados a candidatos regularmente inscritos e às legendas partidárias”, ou seja, os votos em branco e nulos são desconsiderados por serem inválidos.

Portanto, voltando aos números acima apresentados, tem-se 50.037 eleitores presentes menos 883 votos em branco menos 2.832 votos nulos = 46.322 votos válidos. É em cima destes votos válidos que os cálculos do quociente eleitoral e partidário serão feitos.

Para se calcular o quociente eleitoral, aplica-se o disposto no art. 106 da Lei nº 4.737/65, citado acima: divide-se o total de votos válidos pelo número de cadeiras, arredondando o resultado para menos se a fração for até 0,5 e arredondando-se o resultado para mais se a fração for superior a 0,5. No exemplo tem-se então 46.322 votos válidos divididos por 17 (número de vagas a serem preenchidas) = 2.724,82. Conforme disposto no art. 106, se a fração for superior a meio arredonda-se para cima. Tais arredondamentos (para menos ou para mais) são necessários porque o quociente eleitoral sempre terá de ser um número inteiro. Assim, nesta eleição o quociente eleitoral é de 2.725 – significa dizer que qualquer partido, a cada 2.725 votos, terá direito a uma vaga de vereador.

É necessário agora calcular o quociente partidário, conforme a regra explicitada no art. 107 da Lei nº 4.737/65: divide-se o número total de votos de cada partido pelo quociente eleitoral, ignorando-se a parte fracionária, caso exista. Aplicando-se esta regra ao exemplo tem-se o resultado conforme abaixo:

  • Partido A: 15.992 votos divididos por 2.725 = 5,86 = 5 vagas;
  • Partido B: 12.811 votos divididos por 2.725 = 4,70 = 4 vagas;
  • Partido C: 7.025 votos divididos por 2.725 = 2,57 = 2 vagas;
  • Partido D: 6.144 votos divididos por 2.725 = 2,25 = 2 vagas;
  • Partido E: 2.237 votos divididos por 2.725 = 0,82 = zero vagas;
  • Partido F: 2.113 votos divididos por 2.725 = 0,77 = zero vagas.

A respeito dos partidos E e F acima, não seria necessário fazer os cálculos porque percebe-se que eles receberam menos votos do que o quociente eleitoral, ou seja, menos votos do que o mínimo necessário para ter direito a ganhar uma vaga.

Tem-se, assim, o resultado inicial da eleição:

  • Partido A: 5 vagas;
  • Partido B: 4 vagas;
  • Partido C: 2 vagas;
  • Partido D: 2 vagas;
  • Partido E: zero vagas;
  • Partido F: zero vagas.

Veja que foi chamada a atenção para o fato de que este resultado é inicial. Por que? Porque existem 17 vagas em disputa, mas foram distribuídas apenas 13 vagas (5 para o partido A, 4 para o partido B, duas para o partido C e mais duas para o partido D). Estão “sobrando” 4 vagas. Para quem elas vão?

Trecho do livro Aprendendo a votar: noções básicas sobre o funcionamento das eleições no Brasil. O livro está disponível neste link.

O restante da explicação sobre o sistema proporcional está disponível neste link.

8 comentários em “Esclarecimentos sobre o voto proporcional (1ª parte)”

  1. Professor, até então o sistema eleitoral era muito complexo para mim, depois que li seu artigo, achei maravilhosa sua explicação por ser clara e objetiva ! comecei enfim a compreender.
    Obrigada.

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