Há salvação quando se aposta no messianismo jurídico?

Por Rosivaldo Toscano Jr. – 13/04/2016

O messianismo, dentro do espectro sociopolítico, caracteriza-se pela emergência de uma figura que, assim como o Messias bíblico, encarna e simboliza a redenção em um momento de conturbação social. É o salvador. Nele se corporificam a verdade, a bondade e a perfeição. Por isso que a figura do Messias é envolta em características sobre-humanas, portadora das virtudes mais nobres, dos valores mais caros ao imaginário social.

Não é só isso. O messianismo social enquanto movimento idealista e extremado, necessita de uma imagem contraposta para servir de escárnio e de objeto de ódio. É preciso criar uma figura para representar os vícios mais danosos, as vontades mais perniciosas e a propensão para o mal, para a degeneração, para a contaminação do outro.

O messianismo é razão instrumental[1] para justificar ações e condutas que excepcionam os valores declaradamente assumidos, mas que, legitimados pela figura messiânica, são admitidos como necessários ou úteis. A figura messiânica se torna, então, dentro desse imaginário maniqueísta, uma representação: a do único ser capaz de enfrentar o mal, de vencê-lo e exterminá-lo porque possui as qualidades isentas de qualquer questionamento.

A figura Messiânica é dogma. Suas razões não podem ser perquiridas. Questionar a figura messiânica é perigoso porque viola o tabu.[2] E para as massas vitimizadas e capturadas pelo processo de manipulação messiânica, quem a questiona passa a ser visto também como aquele que se alia à figura maléfica a ser combatida implacavelmente pelo herói do imaginário social e por seus seguidores.

A aposta no messianismo advém, antes de tudo, de um processo politicamente imaturo e alienante, uma vez que abstrai as relações de poder que atravessam toda a totalidade social e que geraram o nascimento e crescimento da figura-dogma. Durante o processo de conquista do que hoje chamamos Brasil, os reis portugueses e depois seus delegatários imperiais souberam manipular essa imagem. Aliás, era sobre ela que imperavam.

Assim, a transposição do sentido religioso para o sentido político não ocorre em vão, está sempre perpassada pelas relações de poder e de dominação dos grupos que comandam o Establishment. Mas o grande trunfo da criação da figura messiânica está exatamente em encobrir a conjuntura que a gerou.

Assim como as religiões fizeram,[3] todos os regimes totalitários do Século XX apostaram no messianismo. Hitler, Stalin e Mussolini são apenas alguns exemplos postos de seres supostamente dotados de uma superioridade que, ainda que implicitamente, possuíam um conteúdo transcendental.

Mas não são eles que individualmente se autogeraram. A visão disposicional e individualista é uma distorção porque retira a perspectiva história e a dimensão social das figuras messiânicas, impedindo ver que são frutos de um sistema, são instrumentos de poder corporificados de um processo de opressão e de resistência a ela. Não surgiriam se não houvesse um ambiente propício para que acontecessem.

Embora as figuras messiânicas apareçam como a encarnação pessoal do poder, como geração espontânea ao estilo self-made man, são expressão de um modo de produção e do conjunto de forças que resultam das relações sociais de poder. Lá estão e como tal são consideradas porque beneficiam determinado grupo de interesses e de determinados estratos da pirâmide social. A figura messiânica não raro pode ser uma mera marionete no jogo do poder – embora também possa auferir ganhos diretos ou indiretos, ainda que em sua vaidade (a “necessidade de estima” da pirâmide de Maslow).

Não haveria uma monarquia sequer de pé até hoje sem a manipulação da figura messiânica, ancorada na figura do rei e de seus sucessores. Não quer dizer que na República tal engendramento não ocorra. Não faz muito tempo, assistimos aqui também à criação de uma figura messiânica. Foi um produto dos meios de comunicação em massa para atender aos interesses da elite durante um processo eleitoral presidencial: derrotar o então candidato contrário ao Establishment.  O messianismo gerou um suposto líder nascido a partir do resultado de grupos focais e de construção midiática, criado a imagem e semelhança do caçador de marajás e abre-alas do progresso.

Quem tem o mínimo de memória política recorda bem do que ocorreu quando caiu o véu ilusório que sustentavam essa figura Messiânica – o que só foi possível quando ela passou a não mais agradar ao Establishment. O muro da seletividade que a protegia ruiu.

As religiões perderam muito do seu poder para criar novas figuras messiânicas. Em uma era da sociedade mediada, em que as atribuições de sentido do ser-no-mundo (Heidegger) lançando na inautenticidade são mediadas pelo discurso de verdade da mídia corporativa, são esses veículos de comunicação em massa que produzem os Messias do século XXI.

Na oitava sociedade mais desigual do mundo[4] e que sustenta o apartheid social por meio do autoritarismo – até porque passa a espelhar sua conformação arbitrariamente violenta de sustentação das relações desiguais de poder – e guardando uma inescondível simetria no imaginário social com a figura do pai severo, emergiu o messianismo jurídico.

Não faz muito tempo, a figura messiânica criada midiaticamente se materializou em um jurista. Na imagem messiânica construída enquanto discurso de verdade, sua sede pessoal de justiça fez fundir em uma única pessoa a figura do acusador e do julgador, violando a concepção mais básica do sistema acusatório. Suas posturas por vezes deselegantes com seus pares foram vistas como expressão de coragem.

Sua inegável retidão foi vendida como a prova cabal de que tal qualidade que nela abundaria não estaria presente naqueles que divergiam da figura messiânica – seus próprios pares, que ingressaram através de igual processo e que deveriam merecer igual respeito e consideração. O dissenso, uma questão que deveria ser comum dentro de um processo democrático e de um Estado Democrático de Direito, torna-se algo inaceitável porque os pontos de vista da figura messiânica são sempre a régua para medir o outro.

Atualmente, assistirmos a uma nova aposta no messianismo jurídico-midiático. Transformado em uma espécie de figura pop star, astro principal de um imenso reality show, a audiência é garantida. O arquétipo messiânico midiaticamente construído produz fortes efeitos de comoção social no senso comum teleguiado e até mesmo nos membros da classe jurídica que se identificam com a imagem do Messias. É o herói. E ai de quem ousar questionar o Messias, de quem procurar fazer ver o homem por trás do mito vivo porque quem não adere integralmente ao arquétipo torna-se também a representação do mal.

Na massa capturada pelo discurso messiânico não há espaço para fazer ver que se trata tão somente de mais um homem. Não há espaço para apontar que, igualmente a qualquer outro, esse homem tem virtudes e defeitos, tem acertos e erros, tem posturas juridicamente louváveis e outras reprováveis, e que no afã de fazer justiça – da sua maneira peculiar de ver e enxergar o ordenamento jurídico – possa estar violando direitos fundamentais e mitigando garantias constitucionais irrenunciáveis e incontornáveis.

Há um clima violento no ar porque o messianismo midiático tem um cunho totalitário travestido, visa um suposto consenso baseado na coerção, na opressão e no silenciamento daqueles que não são levados pelo efeito manada e que conseguem enxergar o homem por trás do Messias. Com Philip Zimbardo podemos apontar ainda para o que ele chama de “terror de ficar de fora”.[5] É o medo de ser rejeitado. O desejo de aceitação pode paralisar a iniciativa e anular autonomia pessoal. A ameaça ainda que imaginária de ser expulso do grupo pode levar algumas pessoas a fazerem qualquer coisa para evitar esse cenário aterrador.

O messianismo é infantil porque converte em ídolo um ser humano – com virtudes e defeitos –, impossibilitando uma crítica construtiva sobre suas ações, sobre suas condutas e sobre os efeitos delas na realidade social. Não abre espaço para se perquirir sobre quais interesses a figura messiânica estaria atendendo, embora nem ela mesma perceba.

Um grande risco do messianismo midiático nem está somente no olhar do terceiro sobre a figura messiânica, mas também na sua própria autoimagem. A questão que resta saber é até que ponto a figura messiânica midiaticamente produzida consegue resistir e não cair também ela na fantasia.

Outro grande risco do messianismo está na sua própria conotação religiosa. Em se tratando do mundo do direito, o caráter de crença do messianismo suplanta quaisquer fatos que lhes sejam contrários, pondo em risco o próprio regime democrático. O messianismo não é da Ordem da prova. É da ordem da fé. Não há sequer presunção de veracidade no que diz o Messias porque ele mesmo já é a expressão da Verdade. Esse caráter barra o senso crítico e impede a dialética. O dogma cega.  A fé no milagreiro, igualmente. Em se tratando de um ator jurídico, o messianismo impede uma reflexão sobre as ações do suposto Messias e suas consequências na ordem constitucional.

Por fim, como o sistema é perverso e estruturalmente corrompido, sua imunização é mais do que uma certeza. Passada a situação que lhe era circunstancialmente favorável, a figura messiânica – ainda que seja um inimigo útil – será devidamente dissolvida, afinal, tamanha ousadia não será admitida contra os verdadeiros donos do poder: os membros do estamento. Os retrocessos são certos e atingirão não somente o suposto Messias, mas também todos os seus pares que, ingenuamente ou por uma identificação corporativista, o defendem ardorosamente. Não haverá brechas para que novos Messias surjam para turbar a paz da centenária estrutura dos donos do poder.[6] O efeito do messianismo jurídico será a regressão da independência funcional e a fragilização do Poder de onde a figura emergiu.

A pergunta inquietante que nos resta fazer é: há salvação quando se aposta no messianismo jurídico?


Notas e Referências:

[1] A “razão instrumental” aqui referida se faz no sentido moldado por Max Horkheimer razão, que deveria possibilitar a civilização do homem em face do seu conteúdo objetivo, material, quando instrumentalizada, é preenchida pelo subjetivismo dos detentores do poder. A instrumentalização transforma a razão em mera técnica, como meio que permite a obtenção dos fins de dominação. Sem ética, a razão culmina em um instrumento de exploração da natureza e dos seres humanos. E o avanço progressivo da técnica vem acompanhado de um processo de desumanização cada vez melhor orquestrado. Cf. HORKHEIMER, Max. Critica de la razón instrumental. Tradução ao espanhol por H. A. Murena e D. J. Vogelmann. Buenos Aires: Editorial Sur, 1973. p. 12.

[2] FREUD, Sigmund. Totem e Tabu e Outros Trabalhos. Coleção Sigmund Freud, vol. XIII. Rio de Janeiro: Imago, 2006.

[3] Até porque elas são uma expressão clara do totalitarismo. As religiões apregoam a impossibilidade de se crer e de se aceitar como verdade o Deus ou os fundamentos religiosos do outro. Toda religião é, no seu âmago, excludente das demais e visa a se totalizar. As cruzadas da Idade Média e as do século XXI, bem como a jihad são a prova viva dessa impossibilidade de coexistência plena.

[4] EL BANCO MUNDIAL. Índice de Gini. Disponível em: <http://datos.bancomundial.org/indicador/SI.POV.GINI>. Acesso em: 10 abr. 2016.

[5] ZIMBARDO, Philip. The Lucifer effect: understanding how good people turn evil. New York: Random House Trade Paperbacks, 2008, p. 258.

[6] Tomamos aqui “estamento” no sentido de Raymundo Faoro (FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. 5. ed. São Paulo: Globo, 2012, p. 834), como sendo o grupo que se alija no poder, não necessariamente fazendo parte da elite econômica, mas geralmente com ela articulada ou coincidente. Sua regulação não é por meio da lei, mas por convenções que visam, através de trocas e ajudas mútuas, a manutenção parasitária no poder, por meio da apropriação de oportunidades econômicas, seja na esfera pública ou privada. Não se renova. Mudam-se os quadros, muitos deles passados de uma geração a outra, mas o sistema permanece o mesmo, como uma dinastia. O estamento se exerce e se retroalimenta pela desigualdade social. É da ordem do privilégio.


Rosivaldo Toscano Jr. é Doutor em Direitos Humanos pela UFPB, mestre em direito pela UNISINOS, membro da Comissão de Direitos Humanos da Associação dos Magistrados Brasileiros – AMB, membro da Associação Juízes para a Democracia – AJD e juiz de direito em Natal, RN.

Original aqui.

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