Mais uma vez a frase “eu não sabia” apareceu no cenário político brasileiro. Desta vez, entretanto, a frase – imortalizada pelo presidente Lula durante a crise do “mensalão” – foi dita por um político com mais de 50 anos de vida pública. Ex-Deputado Federal, ex-Governador, ex-Presidente do Brasil, Senador, criador de uma dinastia política no Maranhão, o desconhecedor da vez é o Senador José Sarney. Da mesma forma que Sarney “não sabia” que recebia todo mês R$ 3.800,00 em sua conta pelo auxílio-moradia, o nobre senador também não sabia dos mais de 500 atos secretos do Senado Federal, Casa Legislativa comandada por ele por mais de uma vez. E o desconhecimento se amplia a outras esferas: o diretor-adjunto do Senado, o advogado José Alexandre Gazineo, afirmou no “Estadão” de hoje que não sabia que os documentos que ele assinava eram, na verdade, secretos. Ninguém sabe de nada, nem mesmo o povo – que vota “sem saber” em quem está votando.
O autor Alexis de Tocqueville, aristocrata francês do século XVIII, é mundialmente conhecido por suas obras a respeito da democracia americana de sua época, especialmente pelos livros “A democracia na América” e “O Antigo Regime e a Revolução”. Apesar da democracia se fundamentar no princípio da igualdade, Tocqueville – como bom liberal que era – primava muito mais pela liberdade do indivíduo frente ao coletivo, sendo este o único mecanismo pelo qual a democracia – em especial a nascente democracia americana de sua época, que viria a se tornar o modelo político em nossos tempos – poderia se sustentar. O autor não desprezava o ideal igualitário: apenas colocava o ideal libertário um degrau acima.
Entretanto, tal liberdade individual não deveria ser exacerbada. Se os cidadãos possuíssem uma dedicação rousseauniana, participariam ativamente da discussão dos negócios comuns – condição para o efetivo controle do desempenho dos mandatários e para a boa escolha de representantes. Apenas desta forma o sistema representativo poderia garantir a liberdade individual, na medida em que os homens permanecem senhores de si mesmos. Por outro lado, se os indivíduos – no usufruto de sua liberdade individual – não participassem e delegassem aos representantes a coisa pública, voltando-se com exclusividade para seus interesses privados, assumiriam uma identidade equivalente à dos súditos do “Leviatã”, o que, para Tocqueville, constituiria a servidão do indivíduo frente ao Estado.
A situação descrita no parágrafo anterior levaria a um dos principais problemas vistos por Tocqueville em um regime democrático: instaurar-se-ia um “despotismo democrático”. Tal situação aconteceria quando o indivíduo, imerso em sua vida privada e ignorante da necessidade de sua atuação como membro do corpo político, abriria mão voluntariamente da participação no processo político, tornando-se, assim, dependente do poder estatal. Seria a situação clássica de acomodação do indivíduo frente à esfera política, que pode ser sintetizada na seguinte frase: “já escolhi meu governante por meio do voto; agora, cabe a ele me governar da melhor maneira possível e garantir o meu bem-estar sem a necessidade de minha participação”. A única forma de solucionar tal problema seria por meio da participação efetiva do cidadão na esfera política, interessando-se pelo coletivo e tendo em mente a ideia de que o governante é dependente do verdadeiro corpo político – qual seja, o povo.
Vemos, assim, que a situação política no Brasil corresponde a um verdadeiro “despotismo democrático” tocquevilliano. Ao se entrincheirarem no poder político, nossos governantes se descolam dos reais interesses coletivos, administrando o país de acordo com seus interesses. Entretanto, assim o fazem porque o povo, no usufruto da liberdade garantida pelo próprio Estado, também “está se lixando” para o que o político faz, acreditando que basta votar para ter sua voz ouvida pelo aparelho estatal. Assim, a participação dos cidadãos – não só nos canais institucionais de participação, mas também na vida cotidiana da comunidade – é fundamental para a consolidação da democracia nas sociedades modernas.
A participação da população nas diversas instâncias da vida política da comunidade é, portanto, uma condição necessária para a consolidação da democracia brasileira. Enquanto o povo brasileiro continuar em seu comodismo de ser guiado por “salvadores da pátria” e não se der conta de que para ser ouvido é necessário falar, pouco ou nada mudará na política brasileira – e nossos representantes continuarão afirmando que “não sabiam de nada” e que, portanto, nada podem fazer para solucionar os problemas que afligem o povo brasileiro.
(Publicado originalmente aqui.)