Permita-me, caro leitor, iniciar a coluna desta semana de maneira diferente daquela com a qual você está habituado. Começo esta coluna fazendo uma brincadeira comigo mesmo ao usar a expressão “na minha época…”. Tal expressão passa a ideia de algo que aconteceu há muito tempo, não é mesmo? E o tema ao qual irei me referir nem é tão antigo assim – deve ter por volta de 20 anos, o que, em termos históricos, não é nada.
Enfim, “na minha época” de primeiro grau – opa, mais uma expressão antiga, pois agora é “ensino fundamental” –, na segunda metade da década de 1980, estavam presentes no currículo das escolas duas disciplinas: Educação Moral e Cívica (EMC) e OSPB (Organização Social e Política Brasileira). Segundo o Dicionário Interativo da Educação Brasileira, ambas as disciplinas se tornaram obrigatórias no currículo escolar brasileiro a partir de 1969, por meio do Decreto-lei 869/68, e vieram para substituir as disciplinas de Filosofia e de Sociologia. Também segundo o Dicionário, tais disciplinas “ficaram caracterizadas pela transmissão da ideologia do regime autoritário ao exaltar o nacionalismo e o civismo dos alunos e privilegiar o ensino de informações factuais em detrimento da reflexão e da análise”. Ainda segundo o Dicionário, as disciplinas foram “condenadas pelos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), estabelecidos pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) de 1996” porque tinham um “caráter negativo de doutrinação”.
O texto acima traz dois termos que são frequentemente utilizados de maneira deturpada: “nacionalismo” e “civismo”. Irei me abster de debater o primeiro termo, porque o enfoque é totalmente no segundo: o que significa civismo? Segundo o Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, civismo significa “zelo em contribuir para o progresso da pátria”. Já a Wikipédia afirma que o civismo se refere “a atitudes e comportamentos que no dia-a-dia manifestam os cidadãos na defesa de certos valores e práticas assumidas como fundamentais para a vida coletiva, visando a preservar a sua harmonia e melhorar o bem-estar de todos. Mais especificamente, o civismo consiste no respeito aos valores, às instituições e às práticas especificamente políticas de um país. […] Além disso, os conceitos de cidadania e de republicanismo também estão associados de maneira positiva ao civismo”. Com base nas definições acima, pergunto-me: existe algum problema em “exaltar o civismo nos alunos”? Existe algum problema em enfatizar algo que leve o cidadão a participar mais, e com mais qualidade, na vida pública?
Platão assim define o homem justo em seu livro “A República”: justo é ser bom e sábio para consigo próprio e para os demais na vida em sociedade. Com estas palavras, o filósofo grego defendia a ideia de que o bom cidadão é aquele que sabe seu lugar na sociedade, buscando o que é bom para si próprio, mas que, ao mesmo tempo, busca agir da maneira mais correta no âmbito da coletividade, fundamentando-se, para tanto, no conhecimento que tem sobre a sociedade. Não basta buscar a satisfação de seu bem-estar individual: só é um bom cidadão aquele que se preocupa com o âmbito público da sua sociedade.
Nesse contexto, pergunto-lhe, meu caro leitor: em sentido platônico, temos bons cidadãos no Brasil? Não há dúvidas quanto à resposta a esta pergunta: é claro que não. O cidadão, hoje, é estimulado a viver apenas em seu mundinho particular, preocupando-se consigo próprio – no máximo com sua família –, ignorando a esfera pública.
E o cidadão muitas vezes assim se comporta por falta de conhecimento. Na coluna da semana passada abordei, de maneira sucinta, o sistema eleitoral brasileiro, especificamente o sistema proporcional. Quantos conhecem nosso sistema eleitoral? Pouquíssimos – e falo isso com conhecimento de causa, vendo o espanto no rosto dos meus alunos quando explico como nossos parlamentares são eleitos. Ampliando as perguntas, quantos sabem quais as prerrogativas de um governador, ou de um prefeito, evitando cair nas propagandas enganosas durante a campanha eleitoral – como a de um candidato a governador do DF que prometeu ampliar os campi da Universidade de Brasília, que é federal? Quantos sabem quais são seus direitos mais básicos? Ou uma pergunta ainda mais simples: quantos se lembram em quem votaram nas últimas eleições?
É aqui que retorno à questão da minha infância e à questão das disciplinas de EMC e OSPB. Não tenho dúvidas de que tais disciplinas eram manipuladas com o objetivo de colocar na cabeça das crianças ideias e ideais do regime militar brasileiro, e também não tenho dúvidas de que, com a “redemocratização” ocorrida em 1985, seu currículo teria, necessariamente, de ser alterado para refletir os ares da Nova República. Entretanto, ao invés de se reformular as disciplinas e se aproveitar o que elas poderiam ter de bom no sentido de formar o senso cívico do cidadão brasileiro, o que ocorreu foi o radicalismo típico daqueles que querem se ver livres de tudo aquilo com o que não concordam: extinguiram-se as disciplinas sem se colocar nada em seu lugar – e sem verificar, é claro, aquilo que as disciplinas poderiam trazer de bom para a sociedade brasileira. Ao se buscar “cortar o mal pela raiz”, cortou-se também toda e qualquer possibilidade de implantar em toda uma geração brasileira aquilo que, para Platão, era fundamental para a boa governança: a ideia de civismo, entendida como a necessidade que todo cidadão deveria ter de participar da esfera pública. O resultado é o que temos hoje, e que é péssimo para qualquer perspectiva de desenvolvimento de um país: o desinteresse da grande maioria da população em relação à política e a generalização de que “tudo é igual”, somada à apatia também generalizada de que “o estado deve fazer tudo por nós”. Enquanto o cidadão brasileiro não olhar para si próprio e perceber que o erro está em si, e não nos políticos, pouco ou nada será mudado no cenário político e social brasileiro.