(Continuação da postagem anterior.)
Intrinsecamente, o capitalismo – sendo aqui considerado como um dos requisitos da democracia liberal – não tem como objetivo específico causar ou aumentar as desigualdades políticas entre os cidadãos; ele é um “[…] sistema de geração e distribuição de riqueza em que os agentes econômicos agem livremente em um mercado, realizando intercâmbio de direitos de propriedade” (ARAÚJO, 2005, p. 1). No entanto, com a ênfase sendo dada à liberdade individual, e não à igualdade – esta é dada como garantida, a partir do momento em que todos têm direito a voto e têm acesso a referendos e plebiscitos –, a conseqüência natural do capitalismo é fazer com que alguns tenham mais retorno econômico de suas atividades do que outros, e tal retorno a mais para uns e a menos para outros leva à desigualdade política, refletida pelos quatro pontos citados anteriormente.
[…] Arranjos políticos e econômicos criados para promover a igualdade econômica são, na prática, incompatíveis com a igualdade política substantiva, e até mesmo com a formal. […] Igualdade política substantiva requer a disponibilidade dos meios, e não apenas do direito formal, de discordar. Alguém sem os meios efetivos para expressar suas visões políticas simplesmente não tem direitos políticos substantivos. […] O capitalismo de livre mercado é incompatível com a igualdade política substantiva; é por isso que Friedman afirma que a igualdade política formal é o melhor que o capitalismo pode nos dar (CARTER; STOKES, 2002, p. 59).
A igualdade de recursos para participar na arena política torna-se um valor central do ideal igualitário (CARTER; STOKES, 2002, p. 62). A garantia de liberdade individual é uma condição necessária, mas não suficiente, para o aprofundamento e a manutenção da democracia, já que, ao supor que todos podem fazer tudo, o liberalismo (econômico e político) ignora o ponto de partida real dos indivíduos: como dito anteriormente, aqueles que têm mais recursos econômicos ou políticos irão estar em vantagem em relação àqueles que não têm tais recursos.
O capitalismo como conhecemos é incompatível com a igualdade política substantiva; nada além de uma massiva e irreversível redistribuição de renda em direção à igualdade pode garantir que ninguém tenha mais influência sobre a agenda das políticas públicas simplesmente em virtude do seu lugar na distribuição de riqueza (CARTER; STOKES, 2002, p. 66).
Em suma: a ênfase dos liberal-democratas em garantir a liberdade dos indivíduos, considerando a igualdade política em segundo plano como algo dado e garantido, leva a diferenças notáveis entre os indivíduos. O capitalismo desregulado defendido pelos economistas clássicos, bem como pelos neoliberais da atualidade, garante uma igualdade política formal, onde a função do voto é destacada e considerada como a grande possibilidade de participação política. No entanto, a qualidade do voto não é levada em consideração, fazendo com que os votos daqueles que tenham mais recursos sejam votos “melhores” por serem mais informados ou mais conscientes. Além disso, mesmo que o voto tenha peso igual para todos, aqueles que dispõem de mais recursos são capazes de influenciar o voto de outrem, fazendo com que os mesmos não sejam tão livres quanto parecem em um primeiro momento. E é um pouco difícil acreditar na resposta dada pelos liberais a este problema:
Em uma economia de mercado, todos são proprietários de ativos: ao menos o indivíduo pode vender sua força de trabalho. O mercado aumenta as alternativas para a realização dos interesses materiais das pessoas, que realizam trocas voluntárias de direitos de propriedade. Relações pré-capitalistas, baseadas na família, clã ou tradição, são gradualmente substituídas por aquelas em que a busca por ganho não é restringida por considerações não econômicas. A venda da força de trabalho, antes restrita por regras tradicionais (obrigações feudais, limites à circulação de pessoas em um mesmo país, carreiras restritas a certos grupos sociais), passa a ser guiada pelo mercado, permitindo a cada trabalhador obter a renda máxima possível (salário) de acordo com a demanda por suas habilidades e quanto a sociedade valoriza cada ocupação (ARAÚJO, 2005, p. 2).
Não há como acreditar que a igualdade de possibilidades exista para todos na prática, já que os recursos econômicos disponíveis aos indivíduos não são iguais. Como citado anteriormente, aqueles que dispõem de mais recursos serão mais beneficiados pelos mesmos ao colocarem em prática suas ações, seja em âmbito político ou econômico, e a apresentação da liberdade como o bem supremo a ser perseguido pela democracia liberal apenas faz com que a diferença de recursos políticos e econômicos entre os que têm pouco e os que têm muito aumente com o passar do tempo.
Até mesmo Robert Dahl, criador do conceito de poliarquia, assumiu que a diferença de renda (correspondendo à infra-estrutura marxista) traz como resultado “[…] a criação de grandes diferenças entre os cidadãos na riqueza, no status, nas habilidades, na formação e no controle sobre a informação e sobre a propaganda e no acesso aos líderes políticos”, e que estas diferenças “[…] ajudam a criar desigualdades significativas entre os cidadãos em suas capacidades e oportunidades para participar como membros políticos iguais no [ato de] governar o estado” (CUNNINGHAM, 2002, p. 87-8). Ou seja, a relação entre democracia e capitalismo, entre liberdade e igualdade, é fundamental para se criar uma participação mais consciente e mais igualitária dos indivíduos.
Referências bibliográficas:
ARAÚJO, Marco A. S. Liberdade individual e prosperidade: capitalismo, socialismo e democracia. Não publicado. 2005.
BOBBIO, Norberto. Liberalismo e democracia. São Paulo: Brasiliense, 2000.
CARTER, April & STOKES, Geoffrey (eds.). Democratic theory today: challenges for the 21st century. Cambridge, UK: Polity Press, 2002.
CHILCOTE, Ronald. Teorias de política comparativa: a busca de um paradigma reconsiderado. Petrópolis: Vozes, 1997.
CUNNINGHAM, Frank. Theories of democracy: a critical introduction. London: Routledge, 2002.
STAMATIS, Constantin. “The idea of deliberative democracy. A critical appraisal”. In: Ratio Juris. Vol. 14, Nº 4, pág. 390-405. Oxford, UK: Blackwell Publishers, 2001.