Christian Saint-Etienne*
Nos últimos dois anos, as dificuldades recorrentes enfrentadas pelas Bolsas dos grandes países industrializados têm contribuído para instaurar uma grande dúvida coletiva: será que estamos às vésperas de uma crise do tipo da que estourou nos anos 1930? Antes de avaliar o risco de uma grave crise deflacionária que poderia ocorrer dentro de seis a nove meses, é preciso determinar se nós estamos enfrentando mesmo uma crise das Bolsas, uma crise financeira ou do sistema capitalista como um todo.
Como distinguir estas diferentes formas de rupturas?
Crise das Bolsas
Uma crise das Bolsas é geralmente associada a oscilações violentas das cotações que provocam o aparecimento de menos-valias que afetam títulos importantes. Nesse sentido, não se deve confundir variação dos índices com mais-valias ou menos-valias efetivas, uma vez que a variação dos índices resulta de um ajuste dos preços que é provocado por negócios marginais: se uma única pessoa comprou um único título pelo dobro da cotação atual, a menos-valia efetiva não é a mesma que se todos os detentores de ações compraram as suas ações pelo dobro da cotação atual.
Os riscos associados a uma forte queda dos índices dependem portanto não só das menos-valias efetivas, mas também do modo de financiamento das compras de títulos: as conseqüências são diferentes, conforme os títulos foram comprados à vista por agentes que são também além de tudo solváveis, ou a crédito por agentes que podem ser insolváveis.
Chamaremos portanto de crise das Bolsas uma queda duradoura das cotações que acaba provocando o surgimento de menos-valias efetivas dos agentes econômicos fortes o suficiente para obrigá-los a reconstituir a sua poupança. E chamaremos de crise das Bolsas agravada uma crise das Bolsas que provoca uma insolvabilidade praticamente generalizada dos agentes que compraram os seus títulos a crédito.
Será que estamos diante de uma crise das Bolsas? Na medida em que uma parte significativa das ações, cujo valor diminuiu entre 2000 e 2002, foi comprada antes de 1996, não existe menos-valias efetivas generalizadas sobre os valores, aos menos dos valores que não pertencem à nova economia (incluindo as novas tecnologias da informação e da comunicação – NTIC – e as biotecnologias).
Em compensação, está ocorrendo uma crise das Bolsas de grandes proporções para os valores da nova economia que foram emitidos entre 1997 e 2000. Mas, mesmo neste último caso, nada indica que estejamos mergulhados numa crise das Bolsas agravada na medida em que as taxas da poupança não estão voltando a subir nos países anglo-saxônicos, onde os agentes econômicos mais apostaram nos valores da nova economia emitidos entre 1997 e 2000.
Crise financeira
Existem três tipos diferentes de crise financeira. Em primeiro lugar, existe a crise de financiamento dos agentes não-financeiros: são empresas, casais, famílias ou Estados que enfrentam problemas de financiamento.
Outra crise possível é a da intermediação financeira: neste caso, são bancos ou intermediários financeiros que estão em crise.
E, por fim, existe a crise macro-financeira que pode tomar formas diferentes, ora (ou simultaneamente) de uma crise global dos atores do mercado financeiro, ora de uma crise de política monetária ligada a um ajuste ruim entre as condições de financiamento e as necessidades da economia real, com uma taxa de juros real superior à taxa de crescimento da economia.
Atualmente, não está havendo nenhuma crise financeira global dos atores não-financeiros no mundo industrial, nem nos novos países industrializados (NPI), mesmo se a situação se tornou difícil para muitos deles. Porém, está havendo, efetivamente, crises setoriais de financiamento. As famílias e as empresas americanas estão endividadas, enquanto muitas empresas andam pedindo moratória de suas dívidas por meio da utilização do texto do capítulo 11 da lei sobre as falências.
Da mesma forma, está havendo uma verdadeira crise dos agentes não-financeiros na América Latina. Existe também uma crise da intermediação financeira que é séria no Japão e muito grave na Argentina, mas os bancos americanos e europeus estão conseguindo enfrentá-la, pelo menos por enquanto.
Crise do capitalismo
É preciso diferenciar o que seria uma crise dos fundamentos do capitalismo de uma crise de regulação do capitalismo.
Uma crise dos fundamentos do capitalismo implicaria na ocorrência de rupturas ou de questionamentos do estado de direito jurídico, fiscal e contábil, da economia de mercados descentralizados, e, finalmente, da liberdade de empreendimento permitindo mobilizar livremente homens e capital para produzir bens ou serviços atendendo a uma demanda solvável.
Uma crise de regulação do capitalismo resulta de uma perda de controle das instituições e dos mecanismos que permitem estabilizar o funcionamento de mercados livres. Ela pode tomar três formas: uma crise sistêmica de liquidez, uma crise social caracterizada por desacordos violentos em relação à partilha da mais-valia da produção entre os empreiteiros, os credores da empresa (os acionistas e os agentes que lhe emprestam fundos) e os assalariados, e, finalmente, uma crise técnica associada a carências ou a uma ineficiência de funcionamento do estado de direito ou ainda, mais especificamente, do “governo de empresa”.
No momento, não existe nenhuma crise dos fundamentos do capitalismo, mesmo se alguns andam torcendo para que ela aconteça. Ninguém questiona a necessidade de um estado de direito jurídico, fiscal e contábil. Nenhum ator significativo tem questionado, pelo menos por enquanto, a economia de mercados descentralizados nem a liberdade de empreendimento, uma vez que não existe nenhuma outra alternativa credível.
Em contrapartida, está havendo, sim, uma crise parcial de regulação do capitalismo. Embora não estejamos mergulhados até agora numa situação de crise sistêmica de liquidez, precisamos permanecer muito atentos. Existe uma crise social emergente que passa pelo questionamento da economia dita “patrimonial”, isto é, de uma economia de empresas que se submetem apenas aos interesses exclusivos dos seus acionistas.
Existe sobretudo uma crise técnica de regulação, que diz respeito particularmente às formas de se governar uma empresa.
As falências que resultaram de maquiagens das contas de certas empresas, as quais foram executadas por diversos meios, transmitiram a imagem de uma manipulação organizada pelos responsáveis pela gestão das empresas e os seus auditores, em detrimento dos parceiros da empresa (os acionistas, os empregados e os seus fundos de pensão, além dos clientes, dos fornecedores e dos credores).
O sistema das stock-options (ações oferecidas pela empresa aos seus empregados como forma de repartir os lucros), que havia sido tão elogiado pelos atores do mercado, mostrou-se pervertido por empresários “ávidos por dinheiro”. O modelo do banco universal passou a ser questionado. Mas, para solucionar a maior parte destes pontos, as autoridades econômicas estão estudando, ou já tomaram uma quantidade importante de medidas.
Deste pequeno dicionário da crise, emergem duas conclusões.
Em primeiro lugar, estão ocorrendo sérios problemas de funcionamento da economia mundial, mas não mergulhamos ainda nem numa crise das Bolsas agravada, nem numa crise financeira generalizada, nem numa crise dos fundamentos do capitalismo. É preciso, entretanto, conter as crises setoriais de financiamento e tratar a crise parcial de regulação.
Em segundo lugar, de tanto misturar as coisas e de tanto dramatizar tudo o que acontece, é possível provocar, contudo, aquilo que mais se teme.
*Christian Saint-Etienne é professor das universidades e presidente do Instituto France Stratégie.
Tradução: Jean-Yves de Neufville
Fonte: email