Ainda são necessárias décadas para os cientistas sociais avaliarem com exatidão o avanço pelo qual o Brasil passa nos campos político, social e dos valores desde o final da ditadura militar. Mas, após a eleição da primeira presidenta, pode-se tranqüilamente dizer que o País vem consolidando um avanço particular dentro do avanço geral.
Um processo específico de assunção da identidade brasileira que se iniciou em 2002, quando o País colocou pela primeira vez na Presidência da República alguém que não era latifundiário, empresário ou oficial general. Este processo se ratifica agora, quando se opta pela identidade de gênero e se elege uma mulher, tanto tempo após as mulheres terem se tornado a maioria do eleitorado e da população e de gozarem formalmente dos mesmos direitos dos homens.
Mas, para aprofundar a assunção da identidade popular brasileira, e começar a resgatar a maior dívida que o Brasil possui com seu próprio povo, ainda falta eleger uma pessoa de cor negra. Alguém que tenha a cor de mais da metade do povo, a cor dos mais oprimidos entre os mais oprimidos. Uma pessoa que não expresse apenas o PIB, indicador máximo que pautou a escolha da maioria dos presidentes até aqui. Mas, alguém que, por sua natureza mesma, questione as razões de estarem entre negros e negras as maiores taxas de analfabetismo e de presença nas penitenciárias; os menores índices de renda e de mobilidade social; a quase ausência do Parlamento, dos tribunais superiores, do estado maior das forças armadas e da chefia das grandes empresas privadas e estatais.
Eduardo Galeano, o autor uruguaio do clássico “As veias abertas da América Latina”, em um de seus escritos já perguntara: por que não uma mulher negra na presidência do Brasil? A eleição de Dilma responde a primeira parte dessa pergunta. A outra parte virá a qualquer momento.
Esta virada racial é uma possibilidade viva. Afinal, o Brasil vem passando no último quarto de século por mudanças profundas na economia e na sociedade, que nos permitem vislumbrar um negro ou uma negra no Palácio do Planalto.
A economia, que tanto nos preocupava, vem possibilitando a criação de um mercado interno de massa, condição indispensável ao desenvolvimento de uma democracia ampla.
Também, em uma ascensão social que se inicia com FHC e se amplia enormemente com Lula, milhões de pessoas saem da miséria, conquistam direitos mínimos de sobrevivência e passam a fazer opções de poder, como fizeram nas duas últimas eleições, apesar dos preconceitos.
Em se falando de preconceitos, nestas eleições eles voltaram a se manifestar radicalmente contra o voto nordestino. Sempre caricaturada como terra atrasada, o Nordeste há anos cresce a taxas superiores à média nacional – tendência que se acentua com Lula – e retribuiu essa situação dando o maior percentual regional de votos a Dilma, sua candidata.
Tome-se ainda a saúde como exemplo da mudança em curso. O SUS nacional ainda é precaríssimo, mas em diversos estados e muitas cidades, inclusive as pequenas, um atendimento de boa qualidade já é quase universal. Ao contrário de há poucos anos.
Além disso, desde o ano passado o Brasil tem lei, sistema e política de segurança alimentar e nutricional, algo inédito até na maioria dos países mais ricos, onde a opulência de seu centro contrasta com a pobreza de suas zonas de “periferias internas”. Aqui, já se aventa inclusive a possibilidade de alcançarmos pleno emprego e erradicarmos nossa miséria atávica, na medida em que a economia continuar a crescer.
Toda essa base material está em avanço contínuo e vamos, ainda que aos trancos e barrancos, alcançando consenso social em torno de sua premência. Neste cenário, podemos nos imaginar superando o último de nossos principais preconceitos para eleger uma pessoa negra para comandar o Brasil e o nosso tardio projeto de justiça racial. As condições objetivas estão dadas.
Carlos Tautz é jornalista
(Original aqui.)