A presidente eleita Dilma Rousseff vem reforçando um discurso de composição ministerial a partir do recrutamento de uma cota de mulheres, vindas da composição de partidos do bloco de governo. Embora não se trate de novidade, é uma progressão do modelo já aplicado.
A política de cotas, indicando que as legendas tenham ao menos 30% de suas listas compostas por candidatas do gênero feminino já é corrente e aceita. Embora ainda de difícil cumprimento, em virtude das dificuldades em recrutar o percentual necessário, em geral essa posição cai bem. Isto estimula as mulheres para a vida pública e implica uma oxigenação da vitrine do poder.
É óbvio que o fato de ser mulher por si só não assegura o bom proceder no exercício da função.
O senso comum diria que, além do gênero, a pessoa deve ter competência e capacidade de gestão.
Como já afirmei em outras ocasiões nesse blog, tal noção traz implícita a idéia do tecnicismo como substituto da política. Neste caso, o raciocínio simplista diria que, “sendo uma boa técnica, não importa o gênero da ocupante do primeiro escalão”. São duas balelas que, infinitamente repetidas, transformam-se em factóides de fácil digestão.
Tanto é balela a noção de bastar ser mulher e correligionária para ocupar uma função executiva, como é ainda mais absurda a segunda idéia, a tecnicista. Mais uma vez repete-se o problema do pressuposto falso e da premissa neoliberal oculta.
A administração privada não é administração pública e governar não é gerenciar. Todo ato de governo é político e isto subordina a tudo, incluindo os limites do possível (ou desejável segundo as alianças) e as margens de manobra dos operadores, sejam homens e mulheres.
A aplicação das cotas ministeriais, para além de seu sucesso ou não, acarreta um ganho de poder simbólico para as brasileiras.
É inegável o reconhecimento da mulher para além de funções social e culturalmente definidas na correlação de forças de um mundo construído sob o gênero masculino. Tal fato se acentua considerando estarmos no Brasil, país criado sob o signo da escravidão e cujos símbolos públicos (como bustos, estátuas e nomes de rua), cultuam próceres e patriarcas, quase sempre de duvidosa trajetória.
É muito bom quebrar paradigmas machistas de um país que foi governado, ao longo de quase dois séculos, por imperadores, generais, doutores e bacharéis. O conflito que apresento aqui é outro.
O tristemente curioso é ver esta proposta vir à tona em um momento em que os partidos da coligação capitaneada pela centro-esquerda se vêem no embate (pouco republicano, como sempre) pelas parcelas de poder (espólio do Estado pelo conceito clássico) no primeiro escalão da república.
Conforme já tive a oportunidade de afirmar em outras ocasiões, é uma pena que a discussão de mulheres nas pastas ministeriais não venha acompanhada do debate das bandeiras históricas das lutas de gênero, como os direitos reprodutivos e a conseqüente legalização do aborto; uma política nacional de creches e educação da primeira infância, beneficiando a maior parte da população economicamente ativa (composta em sua maioria por mulheres); a necessária escola de turno integral, com a implantação das atividades para-didáticas, culturais e desportivas no contra turno escolar; e, dentre as medidas mais polêmicas, a necessária regulação das campanhas publicitárias, peças que insistem em caracterizar o corpo da mulher na forma mercadoria, auxiliando a “coisificação” da espécie humana.
Nada do que narrei acima trata de novidade, longe disso. Reconheço também não haver citado nem a metade de um programa histórico e construído a partir de debates, agendas de ativismo, produções acadêmicas e lutas de mulheres presentes no Brasil há mais de trinta anos. Triste é constatar que estas bandeiras estão passando bem longe do debate das ministeriáveis.
Bruno Lima Rocha é cientista político www.estrategiaeanalise.com.br / blimarocha@gmail.com
(Original aqui.)