O Dicionário da Língua Portuguesa/Acordo Ortográfico informa que apagão quer dizer “interrupção provisória do fornecimento de eletricidade a uma dada região”. Na madrugada de sexta-feira, oito Estados do Nordeste atravessaram a madrugada na escuridão. Houve um apagão, certo? Errado, repetiu nesta segunda-feira o ministro Edison Lobão. Cabelos e sapatos engraxados com igual capricho, voz de apresentador de circo, o canastrão maranhense recitou a fala que lhe coube no ato mais recente da ópera dos farsantes: “Não houve apagão. Houve interrupção provisória de energia elétrica”. Quer dizer: embora tenha ocorrido seu significado, o substantivo não aconteceu.
O que ainda esperam os jornalistas para atirar pilhas de dicionários sobre a figura bizarra?, estaria perguntando Nelson Rodrigues. O que há com a imprensa que finge enxergar um ministro de Minas e Energia onde só existe o capataz do latifúndio mais produtivo da capitania explorada pela Famiglia Sarney? Num país sério, um Lobão seria despejado do gabinete no meio da primeira frase cretina. No Brasil da Era da Mediocridade, é outro reincidente sem medo ─ e cada vez mais atrevido. Já não gagueja quando conta que, entre tantos assombros, o apagão foi expulso do país por Lula e proibido definitivamente por Dilma de dar as caras por aqui.
Submisso a todos os governos desde que se apaixonou pela ditadura militar, Lobão estreou no papel de doutor em eletricidade em novembro de 2009, escalado por Lula para justificar o blecaute que afetou metade do Brasil. Numa entrevista coletiva inverossímil, surpreendeu a nação com a versão espantosa: ocorrera apenas a paralisação da usina de Itaipu, provocada por trovões que ninguém ouviu e raios que não caíram. Até então preocupada só com a própria imagem, a candidata que foi ministra de Minas e Energia entre 2003 e 2005 enfim se animou a entrar no picadeiro. “Nós também temos uma outra certeza de que não vai ter apagão”, declamou. E o apagão da véspera?, intrigou-se uma jornalista. “Não confunda apagão com blecaute, minha filha”, irritou-se Dilma Rousseff. Outra que merece uma tempestade de dicionários. Não sabe que apagão e blecaute são sinônimos. Ou finge não saber, o que é a mesma coisa.
“Apagão foi o do Fernando Henrique”, ensinou. Errou de novo. Em 2001, o que houve foi racionamento de energia, decretado para evitar um grande e demorado apagão. Ao compreender que a insuficiência de água nos reservatórios, a falta de chuvas e a escassez de investimentos se haviam conjugado para levar o sistema à beira do colapso, FHC fez um corajoso pronunciamento em rede nacional de TV. Reconheceu os erros cometidos, não se intimidou com o desgaste político resultante do racionamento, transformou a questão em prioridade absoluta e encarregou uma força-tarefa da busca de soluções. Entregou a Lula um país iluminado. O sucessor repassou-o na penumbra.
A escuridão que castigou 46 milhões de nordestinos iluminou a face enrugada de um governo que já nasceu velho. Tem tanto apreço pela verdade quanto Lula, e está ficando ainda mais parecido com Sarney. A exemplo do registrado em 2009, o apagão deste fevereiro avisou, aos berros, que o sistema elétrico está em decomposição. Os equipamentos são obsoletos, faltam investimentos, sobram administradores ineptos. Se fosse mais que um apêndice de Lula, Dilma já teria internado o paciente na UTI. Em vez disso, ratificou a opção preferencial pela mentira feita pelo padrinho há oito anos. E reencenou o espetáculo da vigarice, protagonizado pelo mesmo ministro que Sarney nomeou.
“O sistema é robusto, é muito bom e é moderno”, fantasiou Lobão. “Não há no mundo nada mais moderno que o sistema brasileiro”. Não pode ser robusto nem muito bom um sistema que, segundo dados oficiais, registrou 91 apagões de menor calibre só em 2010 ─ um aumento de 90% em relação a 2008. Não pode ser moderno um setor controlado pela Famiglia que há 50 anos atormenta o Maranhão com o recorrente assassinato do futuro.
Em 2009, ao celebrar a erradicação dos apagões, Dilma resumiu o segredo do milagre. “É que nós, hoje, voltamos a fazer planejamento”. Na sexta-feira, ela consumou o que vinha planejando faz tempo. Depois de prometer valer-se do critério do mérito para compor o primeiro e o segundo escalões, resolveu afastar do setor elétrico o que restava da turma do deputado Eduardo Cunha. E entregou ao bando de José Sarney o controle completo do Ministério de Minas e Energia.
É como afastar o Comando Vermelho para que o PCC governe sozinho um território sem lei.
(Original aqui.)