Análise sucinta de “O príncipe”, de Maquiavel

Muito se fala sobre Maquiavel, o teórico que defendia que “os fins justificam os meios” — frase erroneamente atribuída a ele. Muitos falam sobre o autor e sobre a sua mais conhecida obra, intitulada “O Príncipe”, mas poucos conhecem efetivamente o que o autor falou. Sendo assim, hoje resolvi escrever sobre aquele que é considerado o pai da Ciência Política moderna.

Maquiavel nasce e vive no período do Renascimento na Itália, entre 1468 e 1527. É uma época de grandes convulsões políticas (diversidade de estados italianos, guerras, invasões) e de grandes criações intelectuais. Florença, a cidade em que nasce, está devastada pelas disputas entre diversas facções.

Maquiavel trabalha como secretário da Chancelaria da República Florentina. Não era uma vida pomposa (“de diplomata”). Devido a bom desempenho, passa a ter grande influência na diplomacia florentina. Conheceu diversos outros países, o que influenciou diretamente seus escritos futuros.

Em 1512, novas convulsões políticas alteram o regime de Florença: os Médicis tomam o poder e Maquiavel perde suas funções. Passa, então, a escrever suas obras: Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio (sobre as repúblicas); História de Florença; Tratado sobre a Arte da Guerra; Dos Principados (= O Príncipe); Mandrágora (comédia) e Vida de Castruccio Castracani (história romântica). Escreve O Príncipe objetivando retomar suas funções junto ao novo governo florentino: “Desejaria, pois, que os senhores Médicis consentissem em empregar-me, nem que fosse para mover um rochedo (…) Lendo-se este livro, ver-se-ia que (…) não passei meu tempo dormindo ou me divertindo”.

O objetivo de O Príncipe é investigar “qual a essência dos principados, de quantas espécies podem ser, como são conquistados, conservados e por que se perdem”. Em outras palavras, ele quer verificar a essência dos governos à época.

Os estados (que ele chama de “principados”) podem ser hereditários ou novos. No caso dos hereditários, é tão fácil consegui-los e mantê-los que Maquiavel dá pouca importância a eles. As dificuldades reais se encontram nos principados novos, que podem ser inteiramente novos, ou mistos (agregados ao Estado já existente).

A questão da legitimidade é ignorada por Maquiavel: o que importa é a força. Para ele, o triunfo do mais forte é o fato essencial da história humana. Tudo se resume em ter forças suficientes para conquistar e para manter o poder. A razão primeira e última do príncipe é o uso dessas forças em uma guerra. Assim, a base de todos os estados será boas leis e boas armas; “há boas leis onde há boas armas”. Destaca-se que essas boas armas não são tropas mercenárias (“desunidas, ambiciosas, sem disciplina, infiéis, covardes contra os inimigos”). Boas armas significa dizer que os estados devem ter tropas nacionais — uma grande mudança de pensamento em relação ao paradigma medieval, de submissão pessoal ao senhor feudal.

Maquiavel fala, então, sobre aquela que é uma das principais características da obra: as maneiras de se conquistar/conservar/perder o poder político: por meio da virtu (energia, vigor, resolução, talento, valor bravio e/ou feroz = por meio de suas próprias armas); por meio da fortuna (armas alheias, sorte, “porque o destino quis”); por meio da perversidade (uso exclusivo da força); e, por fim, por meio do favor e consentimento dos concidadãos. Destes, os mais importantes são os dois primeiros, a virtu e a fortuna.

A virtu pode ser entendida como a capacidade própria do príncipe, sua sabedoria, sua força de vontade, sua decisão de ação e seu talento. Já a fortuna é entendida como sorte, acaso, acontecimento alheio à vontade do governante. Ou seja, a primeira se relaciona às características próprias de quem manda, enquanto a segunda se relaciona àqueles fatos alheios à vontade e ao controle do governante. O soberano ideal é, portanto, aquele que alia a virtu à fortuna, ou seja, que sabe aproveitar os momentos que a vida lhe dá usando seu talento nesses momentos específicos.

Para Maquiavel, os que se tornam príncipes pela virtu e pelas próprias armas têm mais dificuldade em se instalar nos principados, mas mais facilidades para mantê-los posteriormente. Para ter sucesso, o príncipe deve ter em mãos meios para constranger; deve poder utilizar a força: “é preciso dispor as coisas de tal maneira que, ao não crerem mais [os subordinados], seja possível [ao príncipe] obrigá-los a crer pela força”. Já os que se tornam príncipes pela fortuna e pelas armas alheias têm mais facilidade em se instalar nos principados, mas mais dificuldades para mantê-los posteriormente. Após estabelecerem-se nos novos principados, dependerão da sorte e da vontade dos exércitos alheios, o que pode variar; por isso, têm dificuldades para manter esses novos territórios — a menos que o príncipe favorecido pela fortuna saiba preparar-se para conservar o que a fortuna lhe colocou nas mãos.

É possível também tornar-se príncipe pela perversidade — e, neste caso, não se exige muita virtu nem muita fortuna. A importância da perversidade é a seguinte: a descrição do bom ou mau uso das crueldades para se conservar um Estado. Segundo Maquiavel, há crueldades bem praticadas e crueldades mal praticadas. Crueldades bem praticadas são aquelas que se cometem todas de uma vez (pois assim os súditos sofrem tudo de uma vez, e depois esquecem que sofreram). Já as crueldades mal praticadas são aquelas que se cometem aos poucos (os súditos passam a odiar o príncipe, pois estão continuamente sofrendo). Já os benefícios advindos do governo do príncipe devem ser mostrados aos súditos gradativamente, para “melhor serem saboreados”.

Outra dica de Maquiavel: o governante deve ofender apenas os impotentes, que não têm condições de ameaçá-lo; caso seja necessário ofender um “grande”, a ofensa deve ser a maior possível, para impor temor: “tratando-se de ofender um homem, deve-se fazê-lo de tal maneira que não se possa temer sua vingança”.

É possível tornar-se príncipe pelo favor dos concidadãos. Neste caso, é exigida alguma virtu e alguma fortuna, o que Maquiavel chama de “astúcia afortunada”. Neste caso, o príncipe pode ser levado ao poder pelos “grandes”, o que é ruim, pois estes são minoria e o príncipe deverá agir contra o povo (maioria) em favor destes grandes. É preferível ser alçado ao poder pelo povo, pois terá o apoio do mesmo — e “o povo é fácil de se satisfazer”.

Após falar sobre a conquista do poder político, Maquiavel fala sobre as características próprias do governante. Ele afirma que o governante recém-empossado vive no meio de dois perigos: o comportamento dos súditos dentro do próprio estado conquistado e o comportamento das potências circundantes. Tendo isso em vista, há uma grande distância entre a maneira que se deveria viver e a maneira como efetivamente se vive. O príncipe que quer manter-se como tal deve, portanto, aprender a não ser sempre bom, e sim a ser ou não ser bom “conforme a necessidade”; deve possuir certos defeitos ou vícios que podem ser necessários à conservação do estado.

O príncipe deveria ser liberal e generoso; porém, ser parcimonioso é um dos vícios que fazem reinar: as liberalidades acabam por conseguir apoio de muito poucos indivíduos. Da mesma forma, deveria ser considerado clemente e não cruel, mas a clemência não deve ser usada inoportunamente. Com isso, protege-se a sociedade (verdadeira clemência do estado).

Seria ótimo se o príncipe pudesse ser amado e temido; se isso é impossível, então o príncipe deve escolher ser temido. “Enquanto fazeis bem [aos homens], são dedicados; (…) mas quando [o perigo] se aproxima, bem depressa se esquivam”. Além disso, os homens receiam muito menos ofender aquele que se faz amar do que aquele que se faz temer. O temor sustenta-se por medo do castigo, que jamais o abandona; o amor pode se desfazer de acordo com o próprio interesse. No entanto, ser temido não significa ser odiado; o ódio é prejudicial ao príncipe. Para não ser odiado, o príncipe deve “abster-se de atentar, seja contra os bens dos súditos, seja contra a honra de suas mulheres”.

O príncipe perfeito deve possuir as naturezas de homem e de animal: como homem, combate pelas leis, regularmente, com lealdade e fidelidade; como animal, combate pela força (leão) e pela astúcia (raposa). Em matéria de promessas e de compromissos, o príncipe deve ser raposa, isto é, não observar a palavra quando observá-la vier a ser-lhe inconveniente e quando desaparecerem as razões que o fizeram prometer.

Tal comportamento, contudo, deve sempre ser oculto dos demais. O príncipe deve possuir a virtude do parecer, do fazer crer, da hipocrisia, sempre tendo em mente o resultado concreto – a manutenção do poder e do estado. “Não é absolutamente necessário que um príncipe possua todas [as qualidades boas], mas que pareça possuí-las. (…) Sempre lhe convém (…) parecer clemente, fiel, humano, religioso, sincero (…) Muitas vezes é ele [príncipe] obrigado, para manter o Estado, a agir contra a humanidade, contra a caridade, contra a própria religião”. Porém, não deve deixar os outros saberem disso, e deve mesmo parecer fazer o contrário. “É preciso (…) que, tanto quanto possível, não se afaste do caminho do bem, mas que, se necessário, saiba entrar no do mal. (…) Em geral, os homens julgam mais pelos olhos do que pelas mãos”. O resultado da dissimulação é o seguinte: “O que se considera é o resultado. Portanto, pense o príncipe exclusivamente em conservar sua vida e seu Estado; se o conseguir, todos os meios que tiver empregado serão julgados dignos e louvados por todo o mundo”.

Em resumo, estas são as principais características da obra. O objetivo final de Maquiavel — recuperar seu emprego — não foi atingido. Porém, O Príncipe passou a ser obra de referência na área da Ciência Política.

A obra passou por três momentos distintos. Em um primeiro momento (1527-1550), o livro é ignorado. Poucos o lêem, e quando o fazem, não dão importância. Em um segundo momento (1550-1750): livro é execrado (sendo incluído no índex). De secretário florentino, Maquiavel torna-se “monstro mítico”. Porém, intimamente, os soberanos lêem cada vez mais a obra devido à “razão do Estado” apregoada por Maquiavel. Por fim, em um terceiro momento (1750-hoje), o livro é “glorificado”. Rousseau diz que o livro foi feito não para o príncipe, mas para o povo, e Napoleão seria a realização mais perfeita do príncipe maquiavélico. A obra é quase sempre mais citada do que lida por realçar o problema das relações entre a política e a moral. Maquiavel efetuou uma ruptura profunda com os autores políticos clássicos (vide as diferenças entre Platão/Aristóteles e Maquiavel) e deu origem a um novo tipo de Ciência Política – fundada na análise do que é e não do que deveria ser.

Referências bibliográficas:

CHEVALLIER, Jean-Jacques. As grandes obras políticas de Maquiavel a nossos dias. Trad. Lydia Cristina. 8ª ed. Rio de Janeiro, Agir, 1998.

MAQUIAVEL. O príncipe. São Paulo: Ed. Martin Claret, 2002.

10 comentários em “Análise sucinta de “O príncipe”, de Maquiavel”

  1. Parabéns professor, excelente análise. Li a obra quando iniciava a graduação, confesso hoje, passados mais de 8 anos daquela oportunidade, que muito pouco sentido extraí do título, faltava-me maturidade para a correnta interpretação, o que não me sobra atualmente, mas que por vezes se preenche por abordagens reveladoras como essa. Obrigado.

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  2. Parabéns professor, excelente análise. Li a obra quando iniciava a graduação, confesso hoje, passados mais de 8 anos daquela oportunidade, que muito pouco sentido extraí do título, faltava-me maturidade para a correnta interpretação, o que não me sobra atualmente, mas que por vezes se preenche por abordagens reveladoras como essa. Obrigado.

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