Quem tem medo da intervenção federal?

Poucos cidadãos sabem mas tramitam no STF 129 pedidos de intervenção federal em 12 unidades da federação, segundo informa o próprio site do Supremo.

A propósito, o canal oficial do STF no YouTube incluiu um video em que o ministro aposentado Carlos Mário Velloso explica tudo sobre o instituto da intervenção federal, respondendo, inclusive, que elementos devem estar presentes para que essa excepcionalidade possa ser solicitada, quem determina a intervenção federal, o que acontece com a unidade da federação que sofre uma intervenção e que autoridade é competente para indicar o interventor.

O vídeo já pode ser assistido no endereço www.youtube.com/stf.

De acordo com o sítio do STF, o estado com maior número de ações é São Paulo (51), seguido por Rio Grande do Sul (41), Espírito Santo (8), Paraíba (8), Rio de Janeiro (5), Pará (5), Goiás (3), Paraná (2), Ceará (2), Distrito Federal (2), Rondônia (1) e Alagoas (1).

Ainda conforme dados oficiais, os pedidos em sua maioria “têm como órgão de origem os Tribunais de Justiça dos estados, o Tribunal Superior do Trabalho e o próprio Supremo Tribunal Federal. A maior parte trata da execução de sentença de precatórios, mas há pedidos sobre o não reajuste de remuneração de servidor público no Rio de Janeiro; pela intervenção no Centro de Atendimento Juvenil Especializado (Caje) do Distrito Federal, e pelo descumprimento de ordem de reintegração de posse em benefício de produtores rurais no Pará”.

Entenda o que é a intervenção federal

Como já estudado, o Estado federal assenta-se no princípio da autonomia dos entes federativos. A autonomia é um poder limitado pela própria constituição, visando sempre a manutenção do pacto federativo. É justamente visando a manutenção da estrutura federal que a própria Constituição prevê as hipóteses de intervenção (FERREIRA FILHO, 2006, p. 54).

Nas palavras de Manoel Gonçalves Ferreira Filho (2006, p. 64),

A intervenção, por ser contrária à autonomia dos Estados-Membros só pode fundar-se em fato de gravidade indisfarçável. Assim, o constituinte cuidou de estabelecer o elenco taxativo dos problemas que são suficientemente perigosos para o todo, a ponto de ensejar essa intervenção.

Deixemos claro, portanto, que a regra é a não intervenção, o que fica claro pela leitura do caput dos arts. 34 e 35 da CRFB/1988.

A intervenção é ato político que consiste na incursão da entidade interventora nas ações da entidade que a suporta. É a antítese da autonomia, constituindo medida extrema e só há de ocorrer nos casos nela taxativamente e indicados como exceção no princípio da não intervenção.

A União, em regra, somente poderá intervir nos estados-membros e no Distrito Federal, enquanto os estados somente poderão intervir nos municípios de seu território. A União não poderá intervir diretamente nos municípios, salvo se pertencentes a Território Federal.

Como explica Manoel Gonçalves Ferreira Filho (2006, p. 64), a competência para decretar a intervenção é do Presidente da República (art. 84, X). Esclarece o mesmo autor:

De fato, ela é uma competência vinculada, cabendo ao Presidente a mera formalização de uma decisão tomada por órgão judiciário, sempre que a intervenção se destinar a “prover a execução de lei federal, ordem ou decisão judiciária” (art. 34, VI) ou a “assegurar o livre exercício” do Judiciário estadual (art. 34, IV). Nestas hipóteses a decisão sobre a intervenção cabe ao Supremo Tribunal Federal, ao Superior Tribunal de Justiça ou ao Tribunal Superior Eleitoral, mediante requisição (art. 36, II). No caso de inexecução de lei federal, a Lei Magna condiciona a intervenção ao provimento de representação do Procurador-Geral da República, que, ocorrendo, dá ensejo à mencionada requisição por parte do Supremo Tribunal Federal (art. 36, III, com a redação da Emenda Constitucional nº 45/2004).

Os pressupostos que autorizam a intervenção são situações críticas que põe em risco a segurança do Estado (art. 34 I e II), o equilíbrio federativo (34, II, III e IV), as finanças estaduais (34, V) e a estabilidade da ordem constitucional (34, VI e VII).

Assim, a intervenção é medida excepcionalíssima, que tem por finalidade: (i) a defesa do Estado (ii) a defesa do princípio federativo, para repelir invasão de uma unidade em outra, pôr termo a grave comprometimento da ordem pública e garantir o livre exercício de qualquer dos poderes nas unidades da federação; (iii) a defesa das finanças estaduais; e (iv) a defesa da ordem propriamente constitucional, quando é autorizada a intervenção nos casos dos incisos VI e VII do art. 34.

Assim, podemos traçar analiticamente as hipóteses constitucionais que autorizariam a intervenção federal:

a)     manutenção da integridade nacional;
b)    confrontação de invasão estrangeira ou de uma unidade da Federação em outra;
c)     termo a grave comprometimento da ordem pública;
d)    garantia do livre exercício de qualquer dos Poderes nas unidades da Federação;
e)     reorganização das finanças da unidade da Federação que:
– suspender o pagamento da dívida fundada por mais de dois anos consecutivos, salvo motivo de força maior; e
– deixar de entregar aos Municípios receitas tributárias fixadas na Constituição, dentro dos prazos estabelecidos em lei;
f)     provimento de execução de lei federal, ordem ou decisão judicial;
g)    garantia de observância dos seguintes princípios constitucionais:
-forma republicana, sistema representativo e regime democrático;
-direitos da pessoa humana;
-autonomia municipal;
– prestação de contas da administração pública, direta e indireta;
– aplicação do mínimo exigido da receita resultante de impostos estaduais, na manutenção e desenvolvimento do ensino e nas ações e serviços públicos de saúde.

A esse propósito, o STF concluiu importante julgado sobre a matéria, conforme noticiado pelo Informativo 511, o qual permite-se transcrição, in verbis:

O Tribunal negou provimento a recurso extraordinário interposto pelo Estado de Santa Catarina contra acórdão do tribunal de justiça local que provera apelação do Município de Timbó, no qual se sustentava ser lícito ao Estado postergar o repasse da parcela do imposto a que se refere o art. 158, IV, da CF (…) não se permitindo, quanto à repartição de receitas tributárias, condicionamento arbitrário por parte do ente responsável pelos repasses a que eles têm direito. (…), concluiu-se que a parcela do ICMS prevista no art. 158, IV, da CF, embora arrecadada pelo Estado, integra de pleno direito o patrimônio do Município, não podendo o ente maior dela dispor ao seu arbítrio, sob pena de grave ofensa ao pacto federativo, sanável mediante o emprego do instituto da intervenção federal (…). Precedentes citados: ADI 2.405-MC/RS (DJ de 17-2-06); ADI 1.179/SP (DJ de 19-12-02); ADI 2.376-MC/RJ (DJ de 4-5-01); ADI 2.377-MC/MG (DJ de 7-11-03).” (RE 572.762, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, julgamento em 18-6-08, Informativo 511).

A defesa da ordem constitucional, nas hipóteses do inc. VII do art. 34, configura o que a doutrina e a jurisprudência pátria denomina “princípios constitucionais sensíveis”. Sobre eles, anota José Afonso da Silva (2008), in litteris:

o termo sensíveis está aí no sentido daquilo que é facilmente percebido pelos sentidos, daquilo que se faz perceber claramente, evidente, visível, manifesto; portanto, princípios sensíveis são aqueles clara e indubitavelmente mostrados pela Constituição, os apontados, enumerados. São sensíveis em outro sentido, como coisa dotada de sensibilidade, que, em sendo contrariada, provoca reação, e esta, no caso, é a intervenção nos Estados, exatamente para assegurar sua observância. Esses princípios são aqueles que estão enumerados no art. 34, VII, que constituem o fulcro da organização constitucional do país: forma republicano do governo; sistema representativo e regime democrático; direitos da pessoa humana; autonomia municipal; prestação de contas da administração pública, direta e indireta.

Princípios constitucionais sensíveis e cláusulas pétreas seriam a mesma coisa?

É um equívoco confundir os princípios constitucionais sensíveis com as cláusulas pétreas, já que, apesar de possuírem um ponto de intersecção, são coisas distintas. O poder de reforma é limitado materialmente de forma positiva, por meio de cláusulas de reprodução obrigatória, ou seja, elementos da Constituição Federal que devem estar presentes nas constituições dos estados-membros e de forma negativa, isto é, por meio de cláusulas que não podem ser estabelecidas, sob pena de ferirem o parâmetro constitucional federal.

José Afonso da Silva (2008) visualiza três tipos de princípios constitucionais federais que integram o ordenamento constitucional estadual. São eles os princípios constitucionais sensíveis, extensíveis e estabelecidos. Os primeiros estão previstos no art. 34, VII, da Constituição Federal e devem ser obedecidos pelos estados-membros, sob pena de intervenção federal.

Os princípios extensíveis são normas de organização ditadas pela Constituição Federal e que devem ser firmadas no âmbito federal. Por sua vez, os princípios constitucionais estabelecidos são aqueles que limitam a estrutura organizacional do estado, como aqueles estabelecidos no art. 37 da CRFB/1988.

O STF já se pronunciou sobre a tipologia em comento:

Se é certo que a Nova Carta Política contempla um elenco menos abrangente de princípios constitucionais sensíveis, a denotar, com isso, a expansão de poderes jurídicos na esfera das coletividades autônomas locais, o mesmo não se pode afirmar quanto aos princípios federais extensíveis e aos princípios constitucionais estabelecidos, os quais, embora disseminados pelo texto constitucional, posto que não é tópica a sua localização, configuram acervo expressivo de limitações dessa autonomia local, cuja identificação — até mesmo pelos efeitos restritivos que deles decorrem — impõe-se realizar. A questão da necessária observância, ou não, pelos Estados-membros, das normas e princípios inerentes ao processo legislativo, provoca a discussão sobre o alcance do poder jurídico da União Federal de impor, ou não, às demais pessoas estatais que integram a estrutura da federação, o respeito incondicional a padrões heterônomos por ela própria instituídos como fatores de compulsória aplicação. (…) Da resolução dessa questão central, emergirá a definição do modelo de federação a ser efetivamente observado nas práticas institucionais. (ADI 216-MC, Rel. p/ o ac. Min. Celso de Mello, julgamento em 23-5-90, DJ de 7-5-93)

Cláusulas pétreas são elementos constitucionais que não podem ser abolidos por meio do poder constitucional derivado reformador (aquele que emenda a Constituição), de forma a ser abolido.  Constitui cláusula pétrea a forma federativa do Estado, o que nos leva a possível conclusão de que os princípios constitucionais seriam cláusulas pétreas, já que a alteração desses últimos poderia levar a desestabilização do modelo federativo. Esse ponto de intersecção não permite chegar à conclusão de que esses dois institutos (cláusulas pétreas e princípios constitucionais sensíveis) sejam coincidentes.

Desse modo, é importante deter atenção ao conceito doutrinário/jurisprudencial de princípio constitucional sensível, tal qual suscitado no art. 34 da Constituição da República.

Verificadas as hipóteses em que a intervenção pode ter lugar, quais os procedimentos a serem observados uma vez configurado algum dos permissivos constitucionais?

Como já mencionado, a intervenção se efetiva por decreto do Presidente da República, que especificará sua amplitude, prazo e condições de execução e ainda, se couber, nomeará o interventor (art. 36, §1o).

A Constituição torna necessário o cumprimento de certas regras formais para a validade do decreto. São considerados pressupostos formais ou elementos procedimentais. Tais requisitos encontram-se dispostos no art. 36 da CRFB/1988.

O decreto de intervenção terá que ser apreciado pelo Congresso Nacional no prazo de vinte e quatro horas e, caso este esteja em recesso, será convocado extraordinariamente no mesmo prazo. (§ 2º, art. 36).

Caso o Congresso reprove a medida, a intervenção será considerada inconstitucional e, se ainda assim, o Presidente manter sua execução, ficará sujeito à pena de crime de responsabilidade (art. 85, II, da CRFB/1988).

Caso a ingerência atinja o Legislativo do Estado membro, não é necessária a presença do interventor, ficando as atribuições legislativas sob o poder do Governador. Porém, se o ato interventivo atingir o Executivo, terá que ser nomeado um interventor para assumir temporariamente o cargo maior do Estado afetado, diante do impedimento do seu Governador.

Há que se observar, ainda, em conformidade com o art. 36, se existe correlação entre os fatos que ensejam a intervenção e certos requisitos formais, a seguir expostos.

Em caso de impedimento do livre exercício dos Poderes Executivo ou Legislativo do estado- membro, a intervenção dependerá de solicitação do Poder impedido e, se o impedimento atingir o Judiciário, de requisição do Supremo Tribunal Federal.

Por outro lado, se ocorrer desobediência a ordem ou decisão judicial por parte do estado- membro, o ato de intervenção terá que estar acompanhado de requisição do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça ou do Tribunal Superior Eleitoral.

No caso de inobservância de qualquer dos princípios constitucionais elencados no art. 34, VII, a decretação dependerá de representação do Procurador- Geral da República, provida pelo Supremo Tribunal Federal, por meio da denominada ação direta de inconstitucionalidade (ADI) interventiva.

Sobre a ADI interventiva, é interessante frisar alguns aspectos do instituto.

A representação interventiva é uma medida excepcionalíssima e fundamenta-se na defesa da observância dos princípios constitucionais sensíveis. São assim denominados, pois sua inobservância pelos estados-membros ou Distrito Federal no exercício de suas competências, pode acarretar a sanção politicamente mais grave que é a intervenção na autonomia política.

Dessa maneira, toda vez que o Poder Público, no exercício de sua competência venha a violar um dos princípios sensíveis, será passível de controle concentrado de constitucionalidade, pela via de ação interventiva.

A representação interventiva é uma ação que possui objeto jurídico-político. Ao ser violado o princípio sensível pelo governo e o STF processar e julgar procedente a representação interventiva, o Presidente da República fica obrigado a expedir o decreto interventivo, sustando os efeitos da lei, para que deixe de utilizá-la por ser inconstitucional.

Assim, declara a inconstitucionalidade formal ou material da lei ou ato normativo estadual. Essa é a dimensão jurídica do instituto, razão pela qual não pode prescindir da apreciação da jurisdição constitucional. Caso o governo insista, o Presidente vai expedir um novo decreto afastando o governador do cargo. Com isso, decreta a intervenção federal no Estado-membro ou Distrito Federal, constituindo-se um controle direto, para fins concretos.

A ADI de intervenção federal possui, portanto, duas finalidades ou dimensões: (i) a jurídica, pois objetiva a declaração de inconstitucionalidade formal ou material da lei ou ato normativo estadual; e (ii) a política, radicada na decretação de intervenção federal no estado-membro, no Distrito Federal ou, ainda, no município de território.

Há que se referir, ainda, a duas peculiaridades da ADI por intervenção.

A primeira relaciona-se à impossibilidade de concessão de liminar. Como a ADI interventiva constitui um controle direto para fins concretos, ou seja, como ela visa a declaração de inconstitucionalidade de um ato normativo para que seja decretada a intervenção federal, há plena carga de satisfatividade na medida, razão pela qual não pode ser deferido provimento liminar.

Apesar disso, não há consenso na doutrina. Uma corrente doutrinária admite a concessão de liminar, sob o argumento de que a norma contida no art. 2˚ da Lei n. 5.5778/72 seria aplicável a ação direta de inconstitucionalidade interventiva. Essa norma permite que o relator da ação direta de inconstitucionalidade interventiva estadual, mediante solicitação do Chefe do Ministério Público Estadual, suspenda liminarmente o ato impugnado.

Tal entendimento é rechaçado por diversos autores, entre eles Guilherme Peña de Moraes (2007, p. 257-258), que se assim se pronuncia a respeito da controvérsia:

Premissa vênia (…) entendemos ser inadmissível a concessão de medida liminar, já que pronunciamento de urgência não pode implicar na antecipação de efeitos práticos inalcançáveis pelo provimento final, que é restrito à declaração de inconstitucionalidade do ato de poder estadual ou distrital, acompanhada de requisição de intervenção federal ao Presidente da República.

A segunda peculiaridade é que apenas o Procurador-Geral da República detém legitimidade para propor a ação direta de inconstitucionalidade de intervenção, sob a inteligência do art. 36, III, da CRFB/1988. Alexandre de Moraes (2003) leciona que a legitimação restrita do PGR não desvirtua a natureza jurídica da representação interventiva enquanto instrumento de controle abstrato de constitucionalidade. Seguindo a doutrina de Alfredo Buzaid, temos que o poder de submeter ao julgamento do STF o ato argüido de inconstitucional (por ter ferido um dos princípios constitucionais sensíveis) representa o exercício do direito de ação.

Na opinião de Gisela Bester (2005, 463), “o fato de ter uma legitimação ativa fechada, delimitada, (…) bem como só poder ser proposta enquanto ação própria no STF, impedem que se trate esta ação como não sendo do controle abstrato, resvalando para algum tipo de manifestação atípica do controle difuso”.

O procedimento, como bem lembra a mesma autora (BESTER, 2005, p. 463), deverá ser compreendido em sintonia com a Lei nº 4337/1964 e com o Regimento Interno do STF (arts. 350 a 354).

Em 1996, no uso de seu poder-dever de representar pela intervenção federal, o Procurador-Geral da República à época, Aristides Junqueira Alvarenga, requereu se efetivasse o instituto no Estado do Mato Grosso, sob o argumento de violação dos direitos humanos. Era o caso do linchamento de três criminosos presos pela população.

O Tribunal julgou improcedente a dita representação, observando que se deveria preservar a autonomia do ente, uma vez que ele já estava apurando as circunstâncias do crime. Elucidador foi o voto do Min. Carlos Velloso. Segundo esse julgador, embora a interpretação literal do § 3º do art. 36 retiraria ou diminuiria a efetividade do princípio constitucional dos direitos da pessoa humana, por exigir ato comissivo, seria fácil perceber que a inobservância desse princípio não raro se daria por omissão das autoridades. Nesse diapasão, pondera que os atos omissivos dos estados autorizam a intervenção federal (VELLOSO, 2003, p. 379).

Merece registro o acórdão, transcritos a seguir seus fragmentos primordiais:

Representação do Procurador-Geral da República pleiteando intervenção federal no Estado de Mato Grosso, para assegurar a observância dos “direitos da pessoa humana“, em face de fato criminoso praticado com extrema crueldade a indicar a inexistência de “condição mínima“, no Estado, “para assegurar o respeito ao primordial direito da pessoa humana, que é o direito à vida“. (…) Representação que merece conhecida, por seu fundamento: alegação de inobservância pelo Estado-Membro do princípio constitucional sensível previsto no art. 34, VII, alínea b, da Constituição de 1988, quanto aos “direitos da pessoa humana“. (…) Hipótese em que estão em causa “direitos da pessoa humana“, em sua compreensão mais ampla, revelando-se impotentes as autoridades policiais locais para manter a segurança de três presos que acabaram subtraídos de sua proteção, por populares revoltados pelo crime que lhes era imputado, sendo mortos com requintes de crueldade. Intervenção federal e restrição à autonomia do Estado-Membro. Princípio federativo. Excepcionalidade da medida interventiva. No caso concreto, o Estado de Mato Grosso, segundo as informações, está procedendo à apuração do crime. Instaurou-se, de imediato, inquérito policial, cujos autos foram encaminhados à autoridade judiciária estadual competente que os devolveu, a pedido do Delegado de Polícia, para o prosseguimento das diligências e averiguações. Embora a extrema gravidade dos fatos e o repúdio que sempre merecem atos de violência e crueldade, não se trata, porém, de situação concreta que, por si só, possa configurar causa bastante a decretar-se intervenção federal no Estado, tendo em conta, também, as providências já adotadas pelas autoridades locais para a apuração do ilícito. Hipótese em que não é, por igual, de determinar-se intervenha a Polícia Federal, na apuração dos fatos, em substituição à Polícia Civil de Mato Grosso. Autonomia do Estado-Membro na organização dos serviços de Justiça e segurança, de sua competência (Constituição, arts. 25, § 1º; 125 e 144, § 4º)” (IF 114, Rel. Min. Néri da Silveira, julgamento em 13-3-91, DJ de 27-9-96).

Aliás, os fatos que ensejam a medida extrema são deveras graves, razão pela qual não se vislumbra, no atual quadrante da história constitucional, indícios de possível uso do expediente de garantia do pacto federativo. Compartilhamos, pois, da opinião de Gisela Bester (2005, p. 463): “embora essas representações interventivas se dêem com bastante freqüência junto ao STF, na verdade as intervenções federais propriamente ditas que de delas deveriam derivar são raríssimas”

Não se deve esquecer que a decretação de intervenção federal resulta em limitação circunstancial ao poder de reforma. Ou seja, na vigência de intervenção, não poderão ser apreciadas propostas de emenda à constituição pelo parlamento (art. 60, § 1º, CRFB/1988). Esse é um efeito colateral do procedimento em comento.

Os demais efeitos da intervenção dependem das causas motivadoras de sua decretação. Caso o ato interventivo tenha sido motivado pelo descumprimento de lei federal, ordem ou decisão judicial, ou ainda pela inobservância de princípios constitucionais, além de ser dispensada a apreciação do Congresso Nacional, o decreto deverá se limitar a suspender a execução do ato impugnado (art. 36, § 3º), ou seja, aquele que violou a lei federal, a ordem judicial ou foi de encontro aos princípios constitucionais.

Nessa hipótese, não haverá razão para nomear interventor federal, não havendo necessidade do afastamento do governador ou dos agentes do Poder Legislativo.

Se o decreto dirigir-se ao Poder Executivo do Estado membro, mister se faz o afastamento temporário do governador e sua conseqüente substituição por um interventor previamente nomeado.

Caso dirija-se ao Legislativo, os deputados são afastados e suas atribuições são passadas às mãos do governador, que passa a exercer também as funções legislativas do Estado.

Cessados os motivos que fundamentaram a decretação da intervenção, as autoridades afastadas passam a exercer novamente suas atribuições normais, a não ser que estejam legalmente impedidas para tanto, como no caso de “impeachment”.

Porém, o principal efeito decorrente da aplicação da intervenção é o afastamento temporário da autonomia estadual, a qual se afirma justamente nos princípios da auto-organização, auto-governo e auto-legislação, passando a União a interferir na administração de um de seus membros.

Como lembra Manoel Gonçalves Ferreira Filho (2006, p. 65), a “intervenção para assegurar o livre exercício do legislativo ou executivo estadual coagido depende de solicitação dele (art, 36, I)”. Essa solicitação, no entanto, não poderá “revestir-se de formas especiais ou obedecer a um rito minucioso, pois a coação normalmente vedaria. Basta que, de algum modo, o poder coato faça sentir sua vontade para caber a decretação” (FERREIRA FILHO, 2006, p. 65).

No que toca à intervenção nos municípios, a regra permanece a da não intervenção, somente se admitindo nos casos do art. 35. A competência para intervir é do Estado em que se localize o município, o que se dará por decreto do Governador. Em simetria com o fenômeno interventivo face aos estados, o decreto conterá a designação do interventor (se for o caso), o prazo e os limites da medida, e será submetido à apreciação da Assembléia Legislativa, no prazo de 24 horas.

Conheça alguns casos, conforme noticiado pelo Supremo Tribunal Federal

Distrito Federal – O mais recente processo de intervenção federal (IF 5179) contra o Distrito Federal foi protocolado pelo procurador-geral da República, Roberto Gurgel. Segundo ele, a medida busca resgatar a normalidade institucional e a credibilidade das instituições do DF, após denúncias de corrupção em altos escalões do GDF e da Câmara Legislativa, que culminaram na decretação da prisão do governador, José Roberto Arruda, pelo Superior Tribunal de Justiça, e de outras quatro pessoas.

O presidente do STF, ministro Gilmar Mendes, solicitou informações ao Governo do Distrito Federal. No pedido, Roberto Gurgel faz um histórico do escândalo de corrupção no Distrito Federal desde o ano de 2009, com investigações relativas a crimes como fraude a procedimentos licitatórios, formação de quadrilha e desvio de verbas públicas.

O outro processo relacionado ao DF diz respeito ao pedido de intervenção (IF 4822) no Centro de Atendimento Juvenil Especializado (Caje), feito pelo então procurador-geral da República, Claudio Fonteles, em 2005. O pedido tem por base deliberação do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (CDDPH) após exame de relatório elaborado por uma comissão especial que condenou a estrutura física e gerencial do CAJE.

Rondônia – Também de autoria da Procuradoria Geral da República, tramita no STF o pedido de Intervenção Federal (IF 5129) contra o estado de Rondônia, por violação a direitos humanos no presídio Urso Branco, em Porto Velho. O pedido foi apresentado ao STF pelo então procurador-geral Antonio Fernando Souza, que classificou como uma “calamidade” a situação no presídio. Segundo ele, “nos últimos oito anos contabilizaram-se mais de cem mortes e dezenas de lesões corporais [contra presos], fruto de motins, rebeliões entre presos e torturas eventualmente perpetradas por agentes penitenciários”.

Alagoas – Em setembro do ano passado, o Tribunal de Justiça de Alagoas (TJ-AL) ajuizou no Supremo Tribunal Federal requisição de intervenção federal (IF 5161) contra o Poder Legislativo alagoano, considerando desobediência a decisão judicial que determinou o afastamento das funções do deputado estadual Cícero Paes Ferro. Segundo ação proposta pelo Ministério Público Estadual, ele é réu em quatro processos penais, dentre os quais um por porte ilegal e outro por homicídio. Para o Ministério Público, era imprescindível o afastamento do deputado para resguardar a regular instrução criminal e a própria Assembleia Legislativa.

São Paulo – O processo de intervenção federal que tramita há mais tempo no STF é a IF 695, que trata de precatórios. A ação chegou à Corte em dezembro de 1998 e foi proposta por uma empresa contra o governo de São Paulo. O trâmite ainda não foi concluído pois o processo foi sobrestado para aguardar o julgamento final de duas Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs 2362 e 2356). O julgamento das ADIs já foi iniciado pelo Plenário e deve ser concluído com o voto do ministro Celso de Mello. As ADIs contestam o artigo 2º da Emenda Constitucional (EC) 30, que em 2000 determinou o pagamento de precatórios de forma parcelada.

Referências:

AGRA, Walber de Moura. Curso de direito constitucional. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007.

BESTER, Gisela. Direito constitucional: fundamentos teóricos. São Paulo: Manole, 2005.

FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de direito constitucional. 32. ed. São Paulo: Saraiva, 2006.

LEWANDOWSKI, Enrique Ricardo. Pressupostos materiais e formais da intervenção federal no Brasil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994.

MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; e BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 2. ed. São Paulo-Brasília: Saraiva-Instituto Brasiliense de Direito Público, 2008.

MORAES, Guilherme Peña de. Direito constitucional: teoria da constituição. 4. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.

VELLOSO, Carlos Mário da Silva. A evolução da interpretação dos direitos fundamentais no Supremo Tribunal Federal. In: SAMPAIO, José Adércio Leite (coord.). Jurisdição Constitucional e direitos fundamentais. Belo Horizonte: Del Rey, 2003.

(Original aqui.)

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