Então tá combinado: para haver democracia, é preciso minimamente a existência de eleições periódicas, livres e limpas, com reais chances da oposição chegar ao poder – isso temos. Ainda dentro dessa versão procedimental, é preciso garantir a liberdade de expressão, pluralidade de fontes de informação, liberdade associativa – também temos.
Há quem discuta se todos esses pontos estão de fato garantidos, e se temos mais ou menos de uns ou de outros, ou se tal e qual partido no poder aprofundam ou minam tais direitos e liberdades.
Entretanto, com todos os percalços, e embora estejamos longe de ser a Suécia – especialmente se forem adicionados outros pré-requisitos como rule of law, accountability, controle da corrupção etc. – estamos muito melhores do que outros países que passaram igualmente por (re)democratização recente, muitos dos quais nossos vizinhos.
Para nosso maior conforto, temos também aqueles indicadores apontados como fundamentais para a estabilidade democrática – barreira da renda, anos de institucionalização, anos de escolaridade, desigualdade declinante (devagar…), população majoritariamente urbana, classe média crescente, militares nos quartéis. Isso para citar apenas algumas variáveis normalmente utilizadas para se explicar a estabilidade dos regimes democráticos, sem querer esgotar as explicações ou tocar nas polêmicas que as envolvem.
Portanto, diferentemente de 20 anos atrás, as atuais escolhas eleitorais não são guiadas com o temor do retrocesso. As eleições, uma vez institucionalizadas, deixam de ser “a festa” para se tornarem simplesmente “o meio” pelo qual preferências são vocalizadas. Para a geração dos meus filhos, eleições democráticas não significam ruptura com passado autoritário, mas simplesmente um processo pelo qual se forma governo. E é aí que a porca torce o rabo: como se fará a tradução da vontade dos eleitores na alocação de recursos, nas escolhas sobre fins últimos, projetos de curto e de longo prazo?
Aqui temos vários desafios que, para além de serem desafios à democracia em si, são desafios sobre o melhor governo. Questões estruturais nos impelem a um jogo que começa bem – escolhemos os representantes – e depois segue por una selva oscura, como diria Dante à entrada do Inferno. No cerne, o presidencialismo de coalizão.
Nosso presidencialismo minoritário determina que o líder eleito seja o chefe de um ministério heterogêneo, muitas vezes conflitante nos princípios e interesses de seus membros. Sobre esse grupo, os eleitores não terão o menor controle. A sua gênese atende à necessidade de maiorias no Congresso, mas quem serão e o que proporão é uma incógnita antes e mesmo depois do resultado nas urnas.
Há uma falta de correspondência entre o voto no presidente – por natureza, plebiscitário e personalizado – e o grupo que depois o cerca. Pode-se votar num candidato “verde” e ter um evangélico radical na pasta que controla os direitos reprodutivos; ou votar num candidato pró-mercado que vá adotar medidas protecionistas; ou num terceiro que faça sua campanha defendendo a redistribuição de renda e adote políticas que concentrem renda, por exemplo, via financiamento da educação dos mais ricos.
Ou seja, não há resposta ao desejo manifestado pelo eleitor: há uma eleição plebiscitária onde se deposita nas mãos do ganhador um enorme poder sobre toda a agenda política dos 4 (ou 8) anos seguintes. Para além da substância, há também um problema no método: a política de formação desse gabinete obedece a uma lógica própria, que é pouco clara e pouco transparente.
Na outra ponta da meada, temos o problema posto no poder legislativo. Graças ao nosso modelo eleitoral, nenhum partido das casas do congresso tem, historicamente, mais do que 20% das cadeiras. Como no Brasil as políticas públicas estão constitucionalizadas, cada governo que quiser promover mudanças substantivas terá de fazê-las via emendas constitucionais, que precisam ser aprovadas duas vezes em cada uma das duas Casas do Congresso, por 60% dos seus membros.
Num jogo de enorme incerteza, melhor não mudar nada; ou mudar marginalmente, para afetar o menos possível interesses organizados; ou, se mudar muito, pagar caro.
É verdade que estudos mostram que os congressistas votam partidariamente e há 16 anos temos coalizões relativamente estáveis (embora extremamente heterogêneas) no Congresso.
Mas há um grande debate sobre o custo dessa estabilidade: certamente o Executivo se empenha em convencer aliados e opositores – e quem já passou pelo Congresso sabe o quanto se gasta em sola de sapato, saliva e cérebro para se construir consensos; mas existem também evidências fortes de que a costura se dá com distribuição de cargos e liberação de verbas (às vezes legítimas, outras não) e, pior, com medidas moralmente inaceitáveis como compra de votos.
Quando Bismarck disse – leis e linguiças, você não quer saber como elas são feitas – ele apontava talvez para todo esse processo de barganha, necessário para acomodar diferenças, e que é inevitável em todo sistema baseado na pluralidade política e em decisões majoritárias. Porém sem regras e limites muito claros, a barganha se traduz em um vale-tudo que empobrece nossa vida cívica.
Aqui também o coitado do eleitor fica sem pai nem mãe, sem espaço para o controle: o sistema proporcional de lista aberta (e com coligações!) não favorece exatamente a análise das ações dos políticos, e a punição dos maus feitos nem sempre é possível.
Enfim: se nossa democracia se consolida no que diz respeito aos procedimentos, temos que conviver com déficits de controle tanto sobre o poder executivo quanto sobre o poder legislativo.
Reformas importantes já foram indicadas para sanar os vícios, como adoção do parlamentarismo, mudanças no sistema eleitoral, etc. Essas soluções estruturais agradam uns poucos, desagradam outros tantos e, na verdade, a maior parte dos atores não tem opinião a respeito ou as consideram desnecessárias. Entretanto, algumas soluções marginais poderiam ser adotadas para reduzir esses problemas.
No poder legislativo, mais transparência, mais luz sobre as práticas, já que regras existem, embora sempre possam ser aperfeiçoadas. Já no poder executivo, o atual período eleitoral seria uma ótima oportunidade para se estabelecer com clareza quem faz o quê: por que não podemos ter um debate dos futuros ministros da Fazenda? Ou futuros ministros da Educação? Ou futuros Chanceleres?
Ok, alguns vão dizer – mas há restrições quanto a quem está no governo, ou negociações em andamento com os demais partidos que apoiarão o futuro presidente, Brasil não é Inglaterra. Mas os partidos e coligações podem ter porta-vozes para os temas, e essas pessoas discutirem programas. Nossos candidatos se esqueceram de que eleições não são só sobre o passado: são, eminentemente, sobre o futuro. No Brasil de hoje, de agendas esvaziadas e discursos rasos, não faria mal um pouco de substância.
Leany Barreiro Lemos é Professora Associada do Instituto de Ciencia Politica, UnB. Foi Pesquisadora Visitante da Georgetown University e do Centro de Estudos Brasileiros, Universidade de Oxford. Autora do livro ” O Senado Federal Brasileiro no Pos-Constituinte”, tem vários artigos publicados na área de estudos legislativos. É atualmente Post-Doctoral Fellow no Global Leader Fellowship Programme, Princeton University, EUA.
(Original aqui.)