A traição foi assunto nas eleições presidenciais. Não tanto quanto privatização, aborto, escândalos, bolinha de papel, entre outros. Porém, aqui e ali, o tema surgia e era meio que afundado à força, para não incomodar ainda mais.
Na política brasileira, a traição é patológica, endêmica e epidêmica, assim como o grupismo, o clientelismo, o nepotismo e outras doenças de nosso sistema político.
Nas eleições de 2010, para não ir muito longe, tivemos uma salada de posições conflitantes ditadas por interesses variados. Tanto interesses familiares quanto de amizade e apoio ao largo de partidos e candidaturas.
Aliás, a traição tem como uma das vertentes justamente a fragilidade da instituição partidária. Imagine, por exemplo, um presidente de partido de oposição que não apoie substancialmente o candidato presidencial de seu partido por conta de outras alianças. Pois aconteceu.
Nesta eleição, Álvaro Dias saiu de candidato a vice-presidente de José Serra para apoiar Osmar Dias, seu irmão, contra Beto Richa, seu correligionário no PSDB. Em São Paulo, Orestes Quércia dividiu o partido com Michel Temer e não apoiou seu amigo e candidato a vice na chapa de Dilma Rousseff. Ficou com Serra.
No Rio Grande do Sul, o PDT estava coligado com José Fogaça (PMDB). Porém, o ex-governador Alceu Collares, principal liderança do PDT no estado, participou ativamente da campanha do governador eleito, Tarso Genro (PT).
Em Santa Catarina, o PMDB, liderado pelo ex-governador Luiz Henrique da Silveira, indicou o vice (Eduardo Pinho Moreira) na chapa de Raimundo Colombo (DEM), governador eleito.
Na Bahia, alguns prefeitos do PMDB, cujo candidato era Geddel Vieira Lima, e do DEM, representado por Paulo Souto na eleição, fizeram campanha para o governador reeleito Jaques Wagner (PT).
Em Pernambuco, o senador Jarbas Vasconcellos (PMDB), depois de ser convencido a se tornar candidato por PSDB, DEM e PPS para que Serra tivesse um palanque no estado, foi abandonado por líderes desses três partidos, que fizeram campanha para o governador reeleito Eduardo Campos (PSB).
Em Minas, os prefeitos optaram pelo chamado “Dilmasia”, ou seja, fizeram campanha para Aécio Neves (PSDB) ao Senado e para seu candidato a governador, Antonio Anastasia (PSDB), porém optaram por Dilma na disputa contra Serra.
Ao final da campanha, Xico Graziano, um dos mais importantes tucanos de São Paulo, postou em seu twitter: “Por que será que perdemos em Minas Gerais?” Ele sabia a resposta.
No Mato Grosso do Sul, o governador reeleito André Puccinelli (PMDB) fez campanha para Serra, apesar dos pedidos de Michel Temer para que ficasse neutro na disputa.
Um dos fatores que ajudam a explicar essas traições é o fato de a realidade local se sobrepor à conjuntura nacional. Em muitos estados, a política regional se organiza sob bases distintas do que acontece no Brasil.
Outro fator é a questão da confiança, que ultrapassa em muito o valor das instituições. Daí, no passado recente, ser comum caciques políticos controlarem várias legendas. Tudo para poder abrigar aliados, consolidar poder e minimizar traições.
As eleições de 2010 trouxeram uma cena em que se misturavam elementos arcaicos e inéditos. O ineditismo está na adoção, ainda que confusa e inconsistente, da Ficha Limpa e na questão da fidelidade partidária. A mudança de partido, de ora em diante, tenderá a ser mais difícil e obrigará uma atuação mais partidária do que nunca.
A traição política não vai deixar de existir, pois, como sabemos, é intrínseca ao ser humano. Pragmaticamente, a política tem na traição, nas promessas não cumpridas, nos factoides e nas mentiras sinceras alguns de seus ingredientes mais viscerais. Por isso desperta tanta paixão.
Murillo de Aragão é cientista político
(Original aqui.)