Um olhar rigoroso sobre a política brasileira indica que o clientelismo derivado dos programas sociais é uma suposta verdade ainda em busca de comprovação. Os pobres não são diferentes dos ricos ou da turma que fica no meio da escala social
O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso reagiu mal às duras críticas disparadas contra o texto dele publicado na edição mais recente da revista Interesse Nacional. A faceta de espetáculo da polêmica já envelheceu um pouquinho, mas o cerne do debate é atualíssimo.
Então vale a pena continuar a discussão.
Qual é o núcleo da argumentação do ex-presidente tucano? Que o governo do PT instituiu por meio das diversas políticas públicas uma rede de clientelas, especialmente no povão mas não só, e que é inútil o PSDB disputar essa base social com o PT.
Em vez disso, diz FHC, a oposição deveria buscar preferencialmente a nova classe média. Que, recém saída da base da pirâmide, bate de frente com o déficit de cidadania, de oportunidades, de bem estar.
Na esteira do artigo do ex-presidente tucano, já foi bem dissecado o equívoco de imaginar uma descontinuidade entre o povão e a classe média. Signifiquem o que significarem esses dois elásticos conceitos.
O Brasil não é uma sociedade de castas, é um país de mobilidade social cada vez mais intensa. As classes conectam-se por largos vasos comunicantes.
Mas o ponto da polêmica talvez seja outro. É mesmo verdade que os programas de combate à pobreza quando conduzidos por governos do PT criam uma clientela política? Se for verdade, será razoável concluir que os conduzidos pelo PSDB também criam.
Ou por acaso as campanhas eleitorais dos políticos do PSDB que implementam programas sociais pedem encarecidamente ao povo que não vote neles, para não dar a impressão de clientelismo?
O absurdo do parágrafo anterior é um sintoma de que talvez a premissa esteja errada.
E se estiver, terá sido ótimo FHC levantar a lebre, para que possa ser devidamente abatida. Como disse na coluna anterior sobre o tema, talvez tenha sido a maior contribuição do texto à luta da oposição.
Um olhar rigoroso sobre a política brasileira indica que o clientelismo derivado dos programas sociais é uma suposta verdade ainda em busca de checagem.
Os pobres não são diferentes dos ricos ou da turma que fica no meio da escala social. Votam nos governos de que gostam e votam na oposição quando não gostam do governo.
E é absolutamente cidadão que o eleitor beneficiado por um forte aumento do Bolsa Família ou do salário mínimo escolha os candidatos que julga mais confiáveis para continuar as políticas com as quais concorda.
Nada a ver com clientelismo.
Os programas de renda mínima levam em certas situações o trabalhador a preferir não aceitar uma proposta de emprego de baixíssima remuneração?
Paciência, melhorem as ofertas. Se não podem pagar um salário decente, se a rentabilidade exige trabalho degradante, talvez seja melhor então repensar o negócio.
Situações particulares não permitem concluir que o Bolsa Família e outros programas de transferência de renda criam dependência ou geram acomodação.
Se mesmo quem já tem muito quer sempre ter mais e viver melhor, por que o muito pobre que não tem quase nada vai se acomodar só por receber algum dinheirinho do governo todo mês?
Mais provável é que esse dinheirinho sirva para criar cidadania, e não dependência. Que pai não quer para o filho uma vida melhor e horizontes mais amplos do que ele próprio teve?
A grande sacada dos programas sociais é dar condições de progredir na vida a quem não conseguiria sozinho executar o primeiro passo.
Uma parte da oposição tem relação crítica e dividida com os programas sociais. Uma hora diz que os criou, para em seguida engrossar o caldo de quem vê automaticamente demagogia quando o governo —qualquer governo — se atreve a propor mais repasse de dinheiro público para os pobres.
Estes primeiros meses de governo Dilma Rousseff são um cenário da contradição.
Com a inflação bombando, o crescimento indo bem e a receita adicional decorrente das mandracarias no câmbio, os números mostrarão ao longo do ano que teria havido dinheiro suficiente para pagar bem mais do que R$ 545 de salário mínimo. E também para dar aumento real aos aposentados.
Mas quando os bons números dos impostos aparecerem, o que você acha que o PSDB vai cobrar do governo? Vai dizer que o governo mentiu quando disse que não haveria recursos para um mínimo maior? Ou vai saudar o cumprimento do superávit primário e dizer que isso comprova a continuidade da política econômica de FHC?
Aí fica mesmo difícil falar com o povão.
(Original aqui.)