O texto deste artigo, ainda que seja longo, compensa e muito ser lido. Fala sobre questões históricas fundamentais que moldaram nosso Brasil atual – bem como nosso próprio mundo, de maneira geral. Recomendo a leitura a todos aqueles que se interessarem por questões referentes à história política do Brasil, especialmente durante o regime de ditadura militar.
O sábado, 10 de dezembro, marca o 27º aniversário da Convenção contra a Tortura, aprovada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 1984 — ratificada pelo Brasil apenas cinco anos depois, justos 48 dias antes do centenário da proclamação da República.
Uma semana atrás, sábado 3, o país se deparou com um documento espantoso, o melhor retrato de uma era, a imagem mais emblemática de uma época conhecida pelo chumbo quente da tortura, o símbolo mais cortante dos 21 anos da ditadura que sangrou o Brasil no período 1964-85. É uma fotografia em preto e branco, como aqueles tempos obscuros, captada na 1ª Auditoria Militar do Rio de Janeiro num dia qualquer de novembro de 1970, quando se completava o primeiro ano no poder do presidente Garrastazú Médici, o líder mais temido da fase mais dura do regime dos generais. A revelação pertence ao livro A vida quer coragem, que o jornalista mineiro Ricardo Amaral lançará este mês pela editora Primeira Pessoa.
A foto mostra de lado, sentada sobre uma cadeira sem braços, uma jovem magra de 22 anos, cabelos curtos, blusa clara de mangas curtas, as mãos entrecruzadas sobre as pernas, vestindo talvez a inevitável calça jeans de sua geração. A fisionomia está séria, fechada como o clima político do país, e o olhar parece absorto sob as sobrancelhas marcantes, quem sabe refletindo sobre os 22 dias terríveis sob tortura a que sobreviveu dez meses antes, ao ser presa pela repressão como integrante da VAR (Vanguarda Armada Revolucionária)-Palmares, uma das siglas da guerrilha que combatia a ditadura pelo desespero das armas. Três décadas depois, a guerrilheira ‘Estela’ contou ao repórter Luís Maklouf Carvalho, o que lhe passava pela mente, ao lembrar os dias de horror na masmorra do DOI-CODI de São Paulo, o centro que tortura que virou símbolo da barbárie do regime: “Levei muita palmatória, me botaram no pau-de-arara, me deram choque, muito choque. Comecei a ter hemorragia, mas eu aguentei. Não disse nem onde morava. Tiveram que me levar para o Hospital Central do Exército”.
Sentença da lente
O país não conhecia esta foto de ‘Estela’, mas reconheceu logo na imagem inconfundível a figura quase adolescente e já convicta da futura presidente Dilma Roussef, que sobreviveu à tortura e à ditadura para, quatro décadas depois, chegar pelo voto popular ao poder usurpado tanto tempo pelos militares. A cena inédita surpreende pela personagem ilustre, mas é espantosa pela presença de duas figuras ainda anônimas, em segundo plano, que conseguem atrair ainda mais a atenção: os dois juízes militares que roubam a cena da guerrilheira em juízo. Eles vestem a túnica do uniforme do Exército e, com a cabeça baixa, apoiados sobre o braço direito, cobrem o rosto com a mão espalmada, ocultando os olhos e a boca, como se eles é que fossem os réus.
Poderia ser um gesto casual, uma mera coincidência, mas é muito mais do que isso. É uma reação coordenada, quase sincronizada, uma ordem unida de desonra, um gestual quase idêntico, um ato reflexo de quem busca o anonimato, de quem procura se esconder, fugir, fingir que não está ali. Ao contrário da moça temerária à sua frente, de cara lavada e mirada quase atrevida, os dois homens fardados ao fundo estão constrangidos, intimidados. Os militares da foto, num sentido estranhamente oposto ao da guerrilheira, estão envergonhados por estarem ali, naquele lugar, naquele momento, expostos à sentença implacável de uma câmera fotográfica.
Diante da presença no tribunal daquela quase menina, frágil e torturada, os dois maduros juízes militares escancaram a dolorida consciência de que não serão absolvidos pelo juízo inapelável da História. Por isso, na falta de um capuz, usam as mãos para se esconder.
O homem à esquerda é um capitão, o da direita exibe nos ombros os galões de major. Fora da foto, quase em frente à jovem, senta-se o presidente do tribunal, um coronel. Na outra ponta da bancada acomodam-se mais dois juízes militares, os vogais. O fotógrafo anônimo, por alguma razão, estava ali autorizado pelo coronel para fazer o registro da audiência e os dois juízes flagrados por sua lente sabiam do perigo iminente da foto. Assim, trataram de esconder suas identidades, na esperança de que esta canhestra tentativa de fuga à responsabilidade lhes assegurasse o pleno anonimato e a eterna impunidade. Livraram a cara e deixaram seus nomes na clandestinidade, mas assim delataram, na cena muda das mãos, a verdadeira face do regime que representavam naquele tribunal de exceção armado por militares para julgar civis, marca distinta de todo regime autoritário.
A imagem envergonhada dos militares que se escondem é a mais dramática e eloquente autoconfissão do crime contra a democracia e os direitos humanos perpetrado pelos generais no golpe de 1964. Apesar da vergonha de seus julgadores, a guerrilheira ‘Estela’ foi condenada a seis anos de prisão. Cumpriu três e, com o recurso, acabou punida com dois anos e um mês de cadeia. “Sobraram 11 meses, que eles não me devolveram. Sou credora do país”, brincou Dilma comigo numa entrevista que fiz em 2005 com a então chefe da Casa Civil de Lula para a revista IstoÉ.
Feridas morais
Naquele funesto ano de 1970, um dos companheiros de armas dos dois juízes militares que se escondem na foto era o capitão Maurício Lopes Lima, então um dos nomes mais notórios do DOI-CODI da rua Tutóia, que ele mesmo abençoou como a “sucursal do inferno”. Foi o que ele disse ao dominicano Tito de Alencar Lima, o frei Tito, quando foi buscá-lo já destroçado no DOPS do notório delegado Sérgio Paranhos Fleury. O capitão levou o frei para sua infernal repartição, onde terminou o serviço de desmantelamento físico e psicológico do religioso, ligado à ALN de Carlos Marighella. Meses depois, atormentado pelos demônios da sucursal de Lopes Lima, foi para o exílio e acabou se enforcando no bosque de um mosteiro nos arredores de Lyon, França, em 1974. Tinha 29 anos, apenas dois mais do que a guerrilheira Dilma Rousseff que sobreviveu ao inferno do capitão.
Em novembro de 2010, o Ministério Público Federal abriu uma ação civil pública na Justiça de São Paulo contra três oficiais do Exército e um da PM, acusados pela morte em 1971 de seis presos políticos e pela tortura em 20 guerrilheiros. Um dos oficiais é o capitão Lopes Lima, uma das guerrilheiras é Dilma Rousseff. Em novembro passado, o desembargador Santoro Facchini mandou arquivar o processo contra o capitão Lopes Lima e seus comparsas, com a alegação previsível: os crimes cometidos na ditadura já estão prescritos. O MP recorreu, com a argumentação inevitável: “Sempre é tempo de se pedir desculpas. Há feridas morais individuais e transindividuais abertas que ainda esperam por desculpa”, sustenta no seu recurso a procuradora Sandra Shimada Kishi, que não usa as mãos para se esconder, nem as palavras para tergiversar.
O desembargador Facchini, sem a mesma habilidade, diz que o Brasil não é signatário de convenções internacional que reconhecem a imprescritibilidade das violações aos direitos humanos. A procuradora Kishi, mais atenta às lições da História, lembra que o Brasil firmou voluntariamente em 1948 a Declaração Universal dos Direitos Humanos. E, em, 2002, ano da primeira eleição presidencial de Lula, o antecessor da guerrilheira ‘Estela’, o país ratificou a Convenção Americana de Direitos Humanos, pela qual se compromete a aceitar as decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Agora, em dezembro, expira o prazo para que o Governo brasileiro se defenda da condenação de um ano atrás, na Corte, pela impunidade aos torturadores e pela falta de investigação sobre os crimes de lesa-humanidade cometidos na repressão à guerrilha do Araguaia no período 1972-74 do Governo Médici.
Conúbio que blinda
O Brasil, pela tibieza de suas lideranças políticas, pela inflexibilidade de suas eminências jurídicas e pelo cinismo de seus comandantes militares ainda tem muito a aprender com a altivez e a dignidade de seus vizinhos de fronteira e de história.
No Uruguai, em outubro passado, a Câmara dos Deputados revogou a chamada Ley de la Caducidad, um acordo entre direita e esquerda que congelou durante 25 anos os crimes de direitos humanos praticados pela ditadura de 12 anos que caiu em 1985, junto com a brasileira. O presidente José Mujica, um ex-guerrilheiro Tupamaro, preso e torturado como Dilma Rousseff, sancionou a lei que permite a reabertura de 88 processos de tortura e violações antes congelados pela autoanistia dos militares. Um deles é o caso dos uruguaios Lílian Celiberti e Universindo Rodríguez Díaz, sequestrados em Porto Alegre, em novembro de 1978, numa ação binacional da Operação Condor que juntou comandos do Exército uruguaio e agentes do DOPS do delegado Pedro Seelig. Assim, poderá vir de Montevidéu a justiça tardia que nunca brotou em Brasília.
O comandante supremo do Exército uruguaio que autorizou o sequestro em Porto Alegre era o general Gregório Goyo Alvarez. Em 2007, o general foi preso num cárcere de Montevidéu especialmente construído para militares envolvidos em crimes de lesa humanidade e, em 2009, condenado a 25 anos de prisão por homicídio muy especialmente agravado contra militantes de esquerda desaparecidos no tráfego sinistro da Condor entre o Uruguai e a Argentina. Alvarez foi responsabilizado diretamente pela morte de 37 pessoas — três menos do que o total de mortos registrados, um por mês, no DOI-CODI da rua Tutóia nos 40 meses que ali reinou o seu fundador, o major Carlos Alberto Brilhante Ustra, companheiro de ofício do capitão Lopes Lima. Processado na Justiça paulista como torturador pela família do jornalista Luiz Eduardo Merlino, morto em 1971 após horas de tortura no pau-de-arara da Tutóia, o hoje coronel Brilhante Ustra relacionou como testemunha de defesa o senador José Sarney, o primeiro presidente civil pós-ditadura e um dos derradeiros caciques do PDS, a legenda da ditadura que o povo não esquece. Isso explica, em parte, o conúbio ainda forte de políticos e militares no Brasil que blinda e brinda os agentes da repressão brasileira com a impunidade e o esquecimento.
Na Argentina, no mesmo outubro passado, a Justiça condenou 16 militares por crimes contra a humanidade, 13 deles sentenciados à prisão perpétua. Diferente da inércia brasileira, onde políticos e juízes escondem o rosto e omitem as palavras, a sociedade argentina já testemunhou a condenação de 222 militares por crimes contra a humanidade, enquanto outros 800 aguardam julgamento, na esteira da revogação no Governo Kirchner das generosas anistias concedidas por seus antecessores, Raúl Alfonsín e Carlos Menem. Um dos réus condenados à pena perpétua foi o capitão de fragata Alfredo Astiz, 59 anos, conhecido como o “Anjo da Morte”, astro da mais famosa sucursal do inferno da Argentina: a Escola de Mecânica da Armada (ESMA), um sinistro endereço de torturas onde sobreviveram apenas 100 dos 5.000 presos que ali passaram e padeceram. Astiz só foi reformado em 1998, quinze anos após a queda da ditadura, porque ousou dizer: “Eu ainda hoje mataria e colocaria bombas se recebesse ordens”. O capitão já estava condenado à prisão perpétua, à revelia, na França (1990) e na Itália (2007).
DNA do passado
Três anos antes, em abril de 1995, a estrela da noite do programa de entrevistas mais famoso da TV argentina, o Tiempo Nuevo, foi um general de quatro estrelas: Martin António Balza, comandante supremo do Exército. Sereno, cabelos brancos aos 61 anos, tirou do bolso um papel com anotações e, sob o silêncio espantado do jornalista Bernardo Neustadt e de toda a nação, fez o mais impactante auto de expiação de um graduado militar do Cone Sul do continente. Disse o general:
— Sem buscar palavras inovadoras, mas apelando aos velhos regulamentos militares, aproveito esta oportunidade para ordenar uma vez mais ao Exército, na presença de toda a sociedade: ninguém está obrigado a cumprir uma ordem imoral ou que se afaste das leis e dos regulamentos militares. Quem o fizer incorre em uma conduta viciosa, digna da sanção que sua gravidade requeira. (…) Sem eufemismos, digo claramente: delinque quem vulnera a Constituição nacional. Delinque quem emite ordens imorais. Delinque quem cumpre ordens imorais. Delinque quem, para cumprir um fim que crê justo, emprega meios injustos e imorais. A compreensão desses aspectos essenciais faz a vida republicana de um Estado.(…) Em nome da luta contra a subversão, o Exército derrubou o governo constitucional e se instalou no poder em forma ilegítima, num golpe de Estado. Venho pedir perdão por isso e assumir a responsabilidade política pelo desatino cometido no passado. No poder, o Exército cometeu ainda outros delitos. O Exército prendeu, sequestrou, torturou e assassinou – tal qual o fizeram os delinquentes subversivos – e muitos de seus membros viraram delinquentes como eles.
O general falava da mais sangrenta ditadura da região, que registra cerca de 30 mil mortos e desaparecidos na chamada “guerra suja” do período 1976-83. Hoje embaixador do governo de Cristina Kirchner na Colômbia, Balza tem medalhas de 17 países, duas delas do Brasil: a Ordem do Cruzeiro do Sul e a Ordem do Mérito Militar, no grau de Grande Oficial, as mais importantes da área federal, conferidas ainda no primeiro Governo FHC.
No Uruguai, no curto espaço de seis semanas, uma notável sequência de fatos mostrou outra enorme diferença entre a coragem uruguaia e a covardia brasileira no trato dos crimes de suas respectivas ditaduras. No dia 21 de outubro, uma equipe de antropólogos localizou na vizinhança de Montevidéu os restos de uma ossada nas escavações no terreno do Batalhão de Paraquedistas nº 14, na cidade de Toledo, a 20 km em linha reta do Palácio Presidencial do Uruguai. Telefonemas nervosos cruzaram o país entre famílias de desaparecidos, confirmando o boato de que a ossada pertencia a um deles, até que a confirmação final brotou ao meio-dia de quinta-feira, 1º de dezembro, com o exame de DNA dos parentes da vítima. Não era apenas mais um desaparecido uruguaio, mas talvez o mais famoso deles: o professor e jornalista Julio Castro, sequestrado no centro da capital em agosto de 1977. Aos 68 anos, educador e teórico respeitado, uma espécie de Paulo Freire uruguaio, Castro foi um dos fundadores do mítico semanário Marcha, fechado pela ditadura já em 1974, um ano após o golpe.
Linha do crime
Desde então, Castro integrava o miasma dos desaparecidos, o purgatório onde as ditaduras depositam os dissidentes e perseguidos que não morreram, nem sobreviveram. O argentino Jorge Videla, o general que deu o golpe em 1976 e hoje cumpre duas penas perpétuas de prisão, definiu em 1979 este reino de incertezas que ele povoou como ninguém:
— O que é um desaparecido? Como tal, o desaparecido é uma incógnita… Enquanto desaparecido, não pode ter nenhum tratamento especial: é uma incógnita, é um desaparecido, não tem identidade. Não está nem morto, nem vivo. Está desaparecido!…
Durante muitos anos, Castro pertenceu a este mundo sombrio de dúvidas e falsas versões. Os militares diziam que havia fugido do país num vôo da Pluna para Buenos Aires, asseguravam que estava morto, garantiam que seu corpo jamais seria encontrado. Mas foi. O jornalista uruguaio Roger Rodríguez, o mais bem informado repórter do país sobre os horrores da ditadura, conta que Castro foi sequestrado pela Operación Pecera, orquestrada entre o Serviço de Informação e Defesa (SID, versão local do SNI brasileiro) e o Organismo Coordenador de Operações Antisubversivas (OCOA), a entidade máxima da repressão no país, coordenadora do sequestro de Lilian e Universindo em Porto Alegre e de dezenas de ações de tortura e desaparecimento em Buenos Aires.
Castro foi levado para um centro clandestino de tortura, o La Casona, na esquina das avenidas Millán e Las Instrucciones, a 6 km do centro da capital. Um brasileiro testemunhou suas últimas hora de vida: o jornalista brasileiro Flávio Tavares, correspondente de O Estado de S.Paulo em Buenos Aires, preso pela ditadura uruguaia quando levantava informações sobre a tortura no país.
A estrondosa reaparição de Julio Castro chocou o país, com os detalhes de sua morte: foi executado com um tiro na testa, numa data imprecisa diante da decomposição provocada pela camada de cal jogada sobre o cadáver, com as mãos amarradas às costas, os tornozelos imobilizados por um arame. “…E um fragmento de costela com fratura de características pré-morte permitem estabelecer a situação de opressão física associada ao momento da morte”, completa o laudo preliminar do legista que analisou a ossada de Castro. Mas, nada teve mais impacto do que a reação oficial, definitiva, do comandante do Exército, que um dia foi Gregório Alvarez e hoje é o general Pedro Aguerre. Na segunda-feira passada, 5 de dezembro, a voz suprema dos militares uruguaios trovejou, numa entrevista coletiva para falar ao país sobre o macabro achado no quartel dos paraquedistas:
— O Exército Nacional não aceitará, não tolerará, nem acobertará homicidas ou delinquentes em suas fileiras. Aquele que está falando com vocês comete erros diariamente, como qualquer ser humano, mas hoje estamos falando de crimes, e essa é uma linha que este Comandante e seu Exército não cruzarão. Não tenho conhecimento de um pacto de silêncio para acobertar crimes dentro da Força que comando, e mesmo desconhecendo, se existiu ou ainda existe até hoje tal pacto, neste momento dou a ordem de sua suspensão imediata.
Presunção de inocência
O uruguaio Aguerre tem a nobre estirpe do argentino Balza, e nenhum parentesco com brasileiros da laia de Brilhante Ustra, Lopes Lima, Sérgio Fleury, Pedro Seelig, entre outros da vasta constelação repressiva do país.
O brasileiro Enzo Martins Peri não tem nenhum motivo, nem antecedentes, para se igualar aos seus conterrâneos acima citados. Pelo contrário. O general que comanda o Exército brasileiro tem a ficha limpa para se inspirar nos seus pares do Uruguai e da Argentina. Ele só chegou ao generalato em 1995, no primeiro Governo FHC, sem nunca ter sujado as mãos com a repressão e as violações aos direitos humanos. Peri vem de um ramo ‘técnico’ da força terrestre, a Engenharia, e era um segundo-tenente de 23 anos quando irrompeu o golpe de 1964. Entre a derrubado do presidente João Goulart e o agitado ano de 1968 que desembocou no AI-5, Peri hibernou num burocrático batalhão de engenharia no Rio de Janeiro. Teve uma rápida passagem pela 2ª Seção (área de informação) do discreto 1º Grupamento de Engenharia e Construção de João Pessoa, PB, no Governo Geisel. Atravessou a turbulenta década de 70 como major, sem as sanguíneas emoções do major Brilhante Ustra, sem razões para esconder o rosto como o major da auditoria que condenou a guerrilheira Dilma Rousseff, hoje sua comandante-em-chefe como presidente da República de um governo constitucional e democrático.
Os outros dois colegas de comando de Peri desfrutam da mesma presunção de inocência. O comandante da Marinha, almirante Júlio Soares de Moura Neto, ainda era um garoto quando veio o golpe de 64, onze dias após completar 21 anos. Só quase cinco meses após a queda de João Goulart é que Moura Neto vestiu a farda, como guarda-marinha. Nos anos de chumbo da década de 1970 manteve sua ficha politicamente alva como o uniforme de capitão-de-corveta. Chegou ao almirantado também no Governo FHC, em 1995. O comandante da Aeronáutica, brigadeiro Juniti Saito, virou aspirante da FAB apenas no final de 1965, 19 meses após o golpe militar. Chegou a capitão em 1971 e terminou a década maldita como major, sem jamais sobrevoar a área mais radical da Aeronáutica incendiada pelo radical brigadeiro João Paulo Burnier. Foi promovido a coronel no Governo Sarney, em 1988, e chegou a brigadeiro com FHC em 1995.
Na ficha funcional dos três, portanto, não existe razão nenhuma para justificar qualquer reação corporativa em defesa de gente que manchou a farda com a tortura. A justa compreensão do processo histórico e o correto conhecimento do passado, como fazem com brilho e coragem os comandantes do Uruguai e da Argentina, fariam muito bem aos três chefes das Forças Armadas brasileiras, que têm compromisso com o país e com a Constituição que juraram defender – não com os radicais e saudosistas do passado que temem os efeitos sanitários de uma eficiente, justa Comissão da Verdade.
Olimpo dos deuses
Os comandantes brasileiros deveriam ler uma didática história de horror contada em 2006 no jornal espanhol El País pelo jornalista e escritor argentino Tomás Eloy Martinez, que teve que deixar seu país na ditadura diante das ameaças de morte da Triple A, a Aliança Anticomunista Argentina. No início de 1978, dois anos após a queda de Isabelita Perón, caminhões fechados descarregaram dezenas de prisioneiros num abandonado galpão com teto de zinco, antigo estacionamento de ônibus às margens da extensa e movimentada avenida Rivadávia, em Floresta, um bairro de classe média na zona oeste da cidade de Buenos Aires. Eram marceneiros, carpinteiros, eletricistas, mestres de obra que, como escreveu Martinez, “chegavam para construir suas próprias tumbas”. Em poucas semanas ergueram quatro fileiras de 20 celas, com muros de cimento e portões de ferro. No extremo norte, numa sala escurecida, cravaram no cimento argolas de ferro para pendurar presos. Nos últimos dias construíram duas salas de tortura, com terminais elétricos reforçados. Serviço encerrado, ao embarcar nos caminhões para abandonar o lugar, ouviram o nome que os guardas deram aos locais de suplício: “sala de cirurgia”. Deixaram para trás o que entraria para a crônica da repressão argentina como um de seu endereços mais fugazes (entre agosto de 1978 e janeiro de 1979) e mais lúgubres: o Olimpo, onde entraram 700 presos e de onde apenas 50 saíram vivos.
Na porta vermelha havia um busto da Virgem de Luján, e uma estranha saudação: Bienvenido al Olimpo de los Dioses. Os verdugos daquele lugar se consideravam encarnações da divindade, com poder para decidir sobre a vida e a morte. “Somos diositos”, diziam aos presos que chegavam. “ Se não cantas, vais para o alto. Aqui não tens sequer o direito de escolher quando irás morrer”.
Um dos presos ali era o físico Mario César Villani, sequestrado ao sair de casa em 1977 e caçado como líder estudantil da Faculdade de Ciências Exatas da Universidade de Buenos Aires. Ele passou por torturas e tormentos em cinco centro diferentes, incluindo a ESMA e o Olimpo, e teimosamente sobreviveu. Na cadeia, virou eletricista, consertando eletrodomésticos, carburadores, motores hidráulicos, circuitos elétricos. Um dia, um dos repressores o levou até a janela da “sala de cirurgia”, onde viu um preso sendo torturado. “Che, flaco, venha me servir um mate!”. E ali ficou, enchendo a cuia do torturador, enquanto a tortura prosseguia com a banalidade que só a ditadura alcança. A habilidade de Villani lembrou aos guardiões que ele podia consertar a picana, o instrumento dos choques elétricos. Ele se recusou, os torturadores passaram a usar um varivolt, um transformador regulável de voltagem. Quando o preso era levado para a ducha, para amplificar o efeito do choque no corpo molhado, Villani percebeu as chagas, as queimaduras que a invenção causava nos presos. Ele teve uma ideia, e fingiu rendição: “Tragam a picana, eu vou consertar”. Como um diosito capaz de diminuir a dor humana, Villani colocou nela um capacitor de voltagem menor para que a tortura não doesse tanto.
Ali, como todo mundo, Villani perdia o nome e a própria identidade. No Olimpo ele era conhecio como “Tito” ou x-96. Da primeira vez, com a dignidade que lhe restava, respondeu ao próprio general Carlos Guillermo Suárez Mason, codinome Pajarito, o chefe linha dura do Primeiro Corpo de Exército, que lhe perguntava o seu nome: “Mario César Villani”. Desmaiou de tanto apanhar com uma corrente. Quando acordou, aprendeu a resposta correta que devia ter dado ao general: “Meu nome é Tito”. Servia também outra resposta: Soy nadie.
O sol teimoso
Muitos daqueles que não tinham nome e não eram ninguém no Olimpo da repressão acabavam embarcando, já mortos, para um vôo sem volta para algum lugar desconhecido. Um dos presos que ajudava a embarcar os cadáveres na seção de carga do avião ousou perguntar para onde os levavam. “Vão para a névoa de nenhum lugar”, responderam.
A frase remonta a 7 de dezembro de 1941. Não é apenas o dia da infâmia do ataque inesperado do Japão à base americana de Pearl Harbor, que arrastou os Estados Unidos para a Segunda Guerra Mundial. É também a data de uma ordem de serviço secreta de Adolf Hitler e que foi resgata pelo Tribunal de Guerra de Nuremberg. O “Decreto de Noite e Névoa” (Nacht und Nebel) estabeleceu a política de Estado dos desaparecimentos forçados no III Reich, aplicados sobre a resistência civil nos países ocupados. Os que escapassem da corte marcial ou do pelotão de fuzilamento deviam ser detidos “durante a noite e a névoa”, nas palavras de Hitler, e levados clandestinamente para a Alemanha nazista. O Führer ensinava: “O efeito de dissuasão destas medidas…a) permite o desaparecimento dos acusados sem deixar rastro, b) nenhuma informação pode ser difundida a respeito do seu paradeiro ou destino”.
O texto recuperado pelo Tribunal de Nuremberg esclarece: “Uma intimidação efetiva e duradoura apenas é lograda por penas de morte ou por medidas que mantenham as familiares e a população na incerteza sobre a sorte do réu (…) Pela mesma razão, a entrega do corpo para o seu enterro no seu lugar de origem não é aconselhável, porque o lugar do enterro poderá ser utilizado para manifestações (…) Através da disseminação de tal terror toda disposição de resistência entre o povo, será eliminada.”. A lógica nazista explica o raciocínio embutido na mente dos governantes militares que produziram uma tragédia coletiva, transnacional, rebaixando em absurda ordem unida os cinco países do Cone Sul na segunda metade do Século 20.
Eram as nações de maior expressão política e força econômica da região, onde hoje vivem mais de 250 milhões de pessoas, duas vezes e meia a população dos outros oito países e três territórios da América do Sul. Ondas sucessivas de governos militares afogaram a democracia e a razão durante quase um século de arbítrio na região. Foram exatos 92 anos somados de ditaduras que eram de um e eram de todos: Paraguai (1954-89), Brasil (1964-85), Chile (1973-90), Uruguai (1973-85) e Argentina (1976-83).
Os dois militares envergonhados na foto do julgamento de Dilma Rousseff resumem, num momento único, este processo histórico que nos levou ao fundo do poço. Eles tinham um forte motivo para usar as mãos para esconder o rosto. Eles não tinham, ali, a noite e a névoa para ocultarem seus crimes. O capitão e o major já sabiam que, cedo ou tarde, a treva da violência e a bruma do arbítrio iriam se dissipar, sob o clarão do sol.
E o sol teima em nascer, todo dia.
Não há noite, nem névoa que resista.
(Original aqui.)