Sobre o ensino jurídico português (III)


Considerações sobre o ensino jurídico português (III)


Considerações finais: por uma mudança no ensino jurídico

 

Nas páginas anteriores apresentaram-se duas visões distintas acerca do Direito como mecanismo de manutenção da ordem em uma sociedade. Na primeira parte mostrou-se a perspectiva filosófica de Francisco de Vitoria, a qual está claramente vinculada à defesa intransigente daquilo que hoje conhece-se por direitos humanos. O autor do século XVI apresenta suas ideias e defende que o ser humano não pode – nem deve – ser visto como um simples objeto que está à disposição de outros: mais que isso, todo ser humano tem intrinsicamente a si mesmo sua própria dignidade, a qual precisa ser protegida de qualquer ameaça e/ou possibilidade de infração.

Por sua vez, na segunda parte fez-se breve apresentação do ensino jurídico em Portugal, com ênfase nos conteúdos ensinados aos alunos que iniciam o curso de Direito em uma das faculdades mais prestigiadas do país. Argumentou-se que, a despeito do ensino jurídico indicar os costumes como uma fonte de direito, na prática os professores baseiam-se claramente no texto da lei como forma de ensinar o Direito aos alunos, colocando em posição secundária outros elementos que apresentam-se de maneira mais subjetiva quando comparados à (suposta) objetividade da legislação[1] criada pelo Estado.

Faz-se então a seguinte pergunta: qual a relação dos ensinamentos de Vitoria com o ensino jurídico atual? O que os alunos na atualidade não têm em seu currículo em termos de educação formal e que poderia ser-lhes acrescentado? E ainda, como poderia este mesmo ensino jurídico ser aprimorado considerando-se a proposta do autor medieval?

Em primeiro lugar, é importante destacar que a perspectiva aqui adotada não é contrária, em absoluto, à existência da lei como elemento regulamentador das relações sociais entre os indivíduos. Como se mostrou anteriormente, não há organização social sem o estabelecimento de regras comuns a todos: toda a vida em coletividade pressupõe necessariamente algum tipo de forma de organização social, sendo a lei historicamente considerada como o mecanismo por excelência que é capaz de concretizar tal organização[2]. Significa dizer, portanto, que não se pode efetivamente vislumbrar na atualidade a convivência entre milhares, ou até mesmo milhões de pessoas, em um mesmo espaço geográfico se não existirem leis que regulem esta convivência.

Da mesma maneira, em segundo lugar considera-se como imprescindível o estudo jurídico nas sociedades modernas. Novamente recorrendo-se à história, não é de hoje que o Direito como disciplina é relevante: para além do Direito Romano – que fundamenta todo o Direito ocidental – fala-se também antes deste em Direito Grego, Direito Hitita, Direito Persa, Direito Hebraico e Direito Egípcio, dentre inúmeros outros. A ideia de que é necessária a existência de um conjunto de regras coletivamente aceito precede até mesmo o surgimento da escrita[3], de forma que não seja possível vislumbrar algo como uma eventual extinção do Direito sem que haja algo que lhe ocupe o lugar.

O que se questiona, portanto, é o conteúdo ensinado aos alunos do primeiro ano do curso de Direito. A dúvida que surge é: será que tais alunos efetivamente têm tido uma fundamentação jurídica que se preocupa com o lado humano da vida em coletividade ou será que o ensino jurídico se limita à explicação da lei sem considerar a quem ela se aplica – ou seja, sem considerar que em última instância será um ser humano que sofrerá as sanções previstas na lei?

Novamente, ressalte-se: não se defende aqui a não aplicação de sanções aos indivíduos. Logicamente que se alguém infringe a lei deverá sofrer sanções. A questão que se coloca é a preocupação com uma formação mais humanista dos alunos do curso de Direito porque estes, após terminarem a licenciatura, estarão lidando diretamente com outros seres humanos. Significa dizer que precisam ter a sensibilidade necessária em compreender a humanidade de casa um de seus “clientes”, enxergando-os como pessoas dotadas de dignidade intrínseca e não como apenas “mais um caso jurídico” que precisa ser resolvido.

Além disso, a crítica aqui delineada não busca retirar a importância da lei como mecanismo garantidor da paz social. Entretanto, não se pode considerar que apenas a letra da lei, aplicada por si só, será capaz de concretizar a tão almejada justiça. Pelo contrário: como se viu, a aplicação da lei “nua e crua” pode inclusive concretizar injustiças sociais – para não dizer atrocidades sociais, como foi o Holocausto –, o que claramente vai contra a proposta dos autores medievais.

Dois exemplos simples ilustram o argumento aqui apresentado[4]. Em fevereiro de 2017 dois Ministros do Supremo Tribunal Federal do Brasil votaram contra um habeas corpus a uma mulher de 39 anos presa em 2011 que tentou furtar, em um supermercado, dois desodorantes e cinco frascos de chicletes[5] cujo valor total corresponde a R$ 42[6]. Um detalhe importante: após ter sido detida, a mulher devolveu os produtos furtados ao supermercado. O argumento dos Ministros foi o de que a mulher seria reincidente neste tipo de crime. Consequentemente, ainda que o conteúdo em si seja de valor insignificante, a forma apresentar-se-ia como mais importante, visto – nas palavras de um dos Ministros – “que a acusada, no caso, é pessoa que está habituada ao crime[7].

Ora, data venia o argumento dos dois Ministros, mas a negação de um habeas corpus apresenta-se como insustentável nesta situação[8]. Considera-se necessária não apenas a verificação do que está na letra da lei – o que os dois Ministros claramente fizeram –, mas também a análise de outros princípios que servem para sustentar a busca pela justiça neste caso. Por exemplo, bastaria a aplicação do princípio da proporcionalidade para se verificar a adequação da aplicação “nua e crua” da lei neste caso. É realmente conveniente manter presa uma mulher, encaminhando-a para um sistema prisional falido, por causa de valor irrisório? Outro princípio a ser considerado é o da ofensividade: qual o efetivo grau de ofensa que a mulher causou ao estabelecimento comercial? Teria esta mulher o direito de resistência devido à insignificância monetária de sua ação?[9]

O exemplo serve para mostrar o perigo do ensino jurídico quando este enfatiza a forma e não o conteúdo da lei. Priorizar a forma em detrimento do conteúdo do Direito faz com que nem sempre garanta-se a justiça, que (teoricamente) é o fim último do Direito. E a escolha pela forma vem da formação jurídica, que desde seu início prioriza o texto da lei em detrimento do objetivo final do Direito cujo conteúdo está diretamente vinculado à concretização da dignidade humana.

O segundo exemplo, mais recente, diz respeito também ao Supremo Tribunal Federal do Brasil. Um Senador brasileiro de grande destaque na política nacional havia sido afastado de seu cargo por um Ministro do Supremo Tribunal Federal em maio de 2017 por ter pedido a um empresário acusado de corrupção o valor de R$ 2 milhões[10] para que pudesse contratar um advogado para sua defesa no âmbito da Operação Lava Jato. O pedido foi concretizado quando um primo do Senador recebeu uma parcela do dinheiro, tendo tal ato sido filmado pela Polícia Federal brasileira.

Porém, em 30 de junho de 2017 outro Ministro do Supremo Tribunal Federal devolveu ao referido Senador seu mandato no Senado Federal. Este Ministro argumentou que não é função do poder Judiciário punir membros do poder Legislativo, cabendo a este último uma eventual punição. Além disso, argumentou o Ministro que o Senador havia sido eleito pelo voto popular e que retirá-lo do mandato por decisão judicial monocrática iria contra tal prerrogativa da soberania popular. Por fim, o Ministro ainda argumentou que o Senador tem uma carreira política elogiável – citando inclusive o número de votos recebidos pelo Senador em eleições passadas, bem como momentos de sua atuação como presidente de um dos principais partidos políticos brasileiros – e que é “pai de família”, somando-se estes aos argumentos anteriores que fundamentaram sua decisão[11].

Para além dos aspectos políticos presentes nos exemplos, os quais não têm guarida neste texto, o que se percebe é que o ensino jurídico acaba por se mostrar deficitário no que diz respeito à visão humanista propugnada por Vitoria. Formam-se juristas que muitas vezes têm um conhecimento aprofundado no que diz respeito ao aspecto formal da legislação, sendo capazes de indicar “de cor” artigos e mais artigos de inúmeras leis, mas que são incapazes de adequá-las às situações fáticas com as quais se deparam. Ou o que é pior: acabam por tomar decisões com o argumento de que “é o que está na lei”. Ou seja, abrem-se brechas para decisões que técnica ou formalmente podem ser irretocáveis, mas que acabam por não concretizar a tão esperada justiça. E pior: muitos dos alunos ainda argumentam que “é assim mesmo” porque “é o que a lei diz”, demonstrando falta de senso crítico e até mesmo de senso imaginativo em relação às situações com as quais se deparam[12].

Não se pode, portanto, permitir em absoluto uma possível banalidade do mal por meio de um olhar jurídico focado apenas no texto da lei, já que, conforme argumentado, isto significa a burocratização extrema do Estado com consequências imprevisíveis no que diz respeito à garantia dos direitos fundamentais dos cidadãos.

Em síntese, é necessário uma reestruturação do ensino jurídico no sentido de inculcar nas jovens mentes a importância de preceitos tão fundamentais para os dias atuais, como é o caso do respeito aos direitos humanos e da busca pela concretização da dignidade humana. Nesta perspectiva é inegável que os teóricos da Escola ibérica da paz, dentre eles Francisco de Vitoria, têm um papel fundamental no desenvolvimento acadêmico destes alunos, de maneira que conhecê-los se torna elemento basilar para o bom desenvolvimento de nossas sociedades atuais.

 

Referências

 

ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém. Um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

 

ASCENSÃO, José de Oliveira. O direito: introdução e teoria geral. 13 ed. refundida. Coimbra: Almedina, 2016.

 

BITTAR, Eduardo Carlos Bianca. Curso de filosofia do direito. 4 ed. São Paulo: Atlas, 2005.

 

CALAFATE, Pedro; GUTIÉRREZ, Ramón Emílio Mandado. Escola Ibérica da Paz: a consciência crítica da conquista e colonização da América: 1511-1694. Escuela Ibérica de la Paz: la conciencia crítica de la conquista y colonización de América: 1511-1694. Prefácio de António Augusto Cançado Trindade; exposições de José Quaresma; design gráfico Colectivo 4.16 e Isabel Lopes de Castro. Santander: Editorial da Universidad de Cantabria, D.L. 2014.

 

CASADO, Letícia. Ministro do STF devolve mandato de Aécio e nega prisão do senador. Folha de S.Paulo. Brasília, 30 de junho de 2017. Disponível em <http://www1.folha.uol.com.br/poder/2017/06/1897359-ministro-do-stf-devolve-mandato-de-aecio-no-senado-e-nega-prisao-do-senador.shtml>. Acesso em: 8 jul. 2017.

 

LAFER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos: um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.

 

MATTEUCCI, Nicola; MENGOZZI, Paolo. Verbete “direitos humanos”. In: BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de política. Trad. Carmen C. Varriale et al.; coord. trad. João Ferreira; rev. geral João Ferreira e Luís Guerreiro Pinto Cacais. 11 ed. Brasília: UnB, 1998.

 

PINHEIRO, Luís de Lima. Introdução ao Estado do Direito I. Apontamentos das aulas. Material disponibilizado via online pela Plataforma Moodle da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Ano letivo 2015/2016.

 

______. Introdução ao Estado do Direito II. Apontamentos das aulas. Material disponibilizado via online pela Plataforma Moodle da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Ano letivo 2015/2016.

 

PORTUGAL. Diário da República Eletrónico. Código Civil. Decreto-Lei n.º 47344. Diário do Governo n.º 274/1966, Série I de 1966-11-25. Disponível em <https://dre.pt/web/guest/legislacao-consolidada/-/lc/107065833/201707081557/exportPdf/normal/1/cacheLevelPage?_LegislacaoConsolidada_WAR_drefrontofficeportlet_rp=indice>. Acesso em: 8 jul. 2017.

 

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REVISTA VEJA. Fachin nega recurso a mulher que furtou desodorante e chiclete. Publicado em 7 fev 2017. Disponível em <http://veja.abril.com.br/brasil/fachin-nega-recurso-a-mulher-que-furtou-desodorante-e-chiclete>. Acesso em: 8 jul. 2017.

 

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WOLKMER, Antonio Carlos (org.). Fundamentos da história do direito. 3 ed. 2 tir. rev. e ampl. Belo Horizonte: Del Rey, 2006.

[1] Indica-se aqui o suposto grau de objetividade da legislação criada pelo Estado porque os textos legais nem sempre são objetivos, ou seja, nem sempre serão interpretados exatamente da mesma forma por pessoas diferentes. Que o digam as interpretações da lei realizadas pelos mais diversos tribunais.

[2] Independentemente do método escolhido para a formação da lei – se um método fundado em critérios religiosos, morais, ditatoriais ou democráticos.

[3] WOLKMER, Antonio Carlos (org.). Fundamentos da história do direito. 3 ed. 2 tir. rev. e ampl. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 16-17.

[4] Destaca-se que os exemplos se referem a fatos ocorridos no Brasil. No entanto, isto não invalida o argumento desenvolvido porque o ensino jurídico brasileiro é semelhante ao ensino jurídico português: é fundamentado na primazia da lei em detrimento de outros princípios que permitem uma análise holística dos casos. Além disso, vale destacar que por razões históricas óbvias o ordenamento jurídico brasileiro é semelhante ao português.

[5] O mesmo que pastilha elástica em Portugal.

[6] Ou € 11 (onze euros), valor em 8 de julho de 2017 conforme o site www.xe.com.

[7] REVISTA VEJA. Fachin nega recurso a mulher que furtou desodorante e chiclete. Publicado em 7 fev 2017. Disponível em <http://veja.abril.com.br/brasil/fachin-nega-recurso-a-mulher-que-furtou-desodorante-e-chiclete>. Acesso em: 8 jul. 2017, grifo nosso. Vale destacar que não se vislumbra a possibilidade de afirmar que alguém está “habituado ao crime” porque comete um furto – provavelmente um furto famélico – pela segunda vez na vida.

[8] Destaca-se que ao fim e ao cabo a mulher obteve o habeas corpus visto terem outros três Ministros votados a favor da concessão. O resultado final, porém, não invalida o argumento aqui desenvolvido e defendido.

[9] É interessante notar que a Constituição brasileira não traz de maneira explícita, em nenhum momento, o direito de resistência. Sua existência é garantida por meio de interpretações de outros dispositivos constitucionais. Já a Constituição portuguesa traz o direito de resistência em seu art. 21.º – o que não deixa de ser sintomático da primazia da lei à qual já se referiu: o cidadão pode resistir porque há uma lei que o permite e não por ser o justo ou conveniente, como nas palavras de Vitoria.

[10] Ou aproximadamente € 535 mil (quinhentos e trinca e cinco mil euros), valor em 8 de julho de 2017 conforme o site www.xe.com.

[11] CASADO, Letícia. Ministro do STF devolve mandato de Aécio e nega prisão do senador. Folha de S.Paulo. Brasília, 30 de junho de 2017.

[12] Logicamente que não se defende aqui uma completa rebeldia ao texto da lei. Mas o aluno de Direito precisa ter senso crítico para saber o que pode ocorrer de errado se ele simplesmente aplicar a lei como ela se apresenta, por um lado, assim como precisa ter senso imaginativo no sentido de buscar outras opções que sejam mais benéficas para o réu, especialmente quando se considera que o objetivo final do Direito – a concretização da justiça – está diretamente relacionada à garantia da dignidade humana, como já indica o art. 1.º da Constituição da República Portuguesa.

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