A novidade central no período democrático pós-regime civil-militar são as novas formas de atuação, ou melhor, um novo ‘locus’ de atuação política, fora da esfera política institucionalizada que se impõem politicamente e fazem pressão e demandas sobre a esfera política (SADER, 1988). Os movimentos sociais possuem um impacto nas novas relações com o Estado, deslocando as antigas relações dos atores dos movimentos sociais como portadores de interesses universais de toda a sociedade e oposição às estruturas sociais para uma nova atuação social.
Uma nova atuação destes sujeitos sociais que passam a defender uma autonomia dos indivíduos em relação ao Estado e construção dos movimentos nas diversas redes, definindo novos lugares políticos – que remetem ao lugar social de cada um – pautados por experiências específicas (SADER, 1988), a exemplo os movimentos das mulheres, negros e LGBT¹.
Estes novos movimentos sociais passam a buscar seus direitos conectados com o entendimento de uma constitucionalidade que envolva as carências e demandas sociais, junto ao questionamento crítico do papel do próprio Estado. Estas possibilidades de reivindicação, pautar interesses e explicar demandas e conflitos sociais foram possíveis somente graças ao ‘empoderamento’ destes novos atores políticos na esfera política, devido a este Estado mais ‘permeável’ em relação ao estado do antigo regime. Apesar da existência de novos atores políticos e novos espaços de atuação política, na elaboração da constituição de 1988 ficou claro a persistência de forças políticas do antigo regime² buscando assegurar espaço no novo cenário político, predominando padrões tradicionais da política, frustrando as expectativas de maior participação na definição de políticas (KINZO, 2001).
Comparativamente com o período passado, o Brasil indubitavelmente ampliou o caráter de liberdade de oposição e contestação, assim como de competição e participação política (KINZO, 2001), do ponto de vista meramente formal, a democracia se institucionalizou no país, porém devem ser feitas ressalvas enquanto o caráter dessa participação e contestação popular em relação ao funcionamento do processo político, junto com o caráter de democratização considerado.
O que na verdade vemos é uma ‘liberalização’ do regime político brasileiro, no sentido da expansão dos ideais liberais que vão se tornando normas e instituições pertencentes ao arranjo político nacional. Não existe uma real democratização da sociedade brasileira, isto é, reestruturação político-econômica da sociedade, redistribuição de renda, reorganização da divisão do trabalho; e transformação dos padrões culturais e simbólicos de interpretação e comunicação dos indivíduos, que traria uma reavaliação positiva de identidades e produtos culturais desrespeitados de determinados grupos sociais. (FRASER, 2001)³ Ainda mais, não existe o compromisso com a igualdade política que implique na mudança das instituições e práticas democráticas que passem a incluir a representação de grupos sociais estrututalmente desfavorecidos, preservando o discurso político de grupos dominantes e logrando preservar a história de exclusão e marginalização de grupos desfavorecidos da influência política (YOUNG, 2006).
A não consolidação dessa democracia de que falo é perceptível por restrições concretas na esfera política, mesmo com um todo arcabouço de instituições formalmente estabelecidas, mantêm-se a existência ‘filtros não formais’ que geram uma concentração de poder de elites restritas e homogêneas; manutenção de relações de vínculo clientelístico; e permanência de ‘indivíduos-chave’ do regime militar na esfera política brasileira, como os casos de José Sarney e Marco Maciel. Fatores estes citados que imperam na manutenção do status quo de exclusão dos setores populares da sociedade.
Os déficits da democracia brasileira não representam o seu fracasso, mas sim seus desafios. É necessária uma proposta alternativa para a democracia formal brasileira para que se possa evitar a manutenção de ciclos viciosos que reforçam o caráter excludente na esfera política. Para que esta transformação possa trazer maior eficácia nas soluções de injustiças sociais, novas relações econômicas, e portanto, transformar o sistema democrático brasileiro por meio de uma nova política democrática.
Por Robert Lee*.
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¹ Lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e transgêneros.
² Podemos citar o episódio do “centrão” contra o bloco progressista na Assembléia Nacional Constituinte, na qual este primeiro grupo pluripartidário conservador e tradicional conseguiu impor sua maioria na mesma.
³ Não quero entrar aqui no dilema redistribuição/reconhecimento. Ver mais em FRASER, 2001.
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FRASER, Nancy. “Da Redistribuição ao Reconhecimento? Dilemas da Justiça na era Pós-Socialista”. In: Jessé Souza, org. Democracia Hoje. Brasília, Editora UnB, 2001. pp. 245-282.
KINZO, Maria Dalva. “A democratização brasileira: um balanço do processo político desde a transição”. São Paulo em Perspectiva, vol. 15, n. 4, dezembro. 2001. pp. 3-12.
SADER, Eder. Quando novos personagens entram em cena: experiências, falas e lutas dos trabalhadores da Grande São Paulo. Rio de Janeiro. Ed. Paz e Terra. 1988. pp.25-60
YOUNG, Iris Marion. Representação política, identidade e minorias. Lua Nova. São Paulo, n. 67. 2006.
(Original aqui.)