O título do texto é uma provocação. Não votei em Paulo Maluf para prefeito de São Paulo, em 1992. E também não teria votado nele em 1982 ou nas eleições seguintes que o levaram à Câmara dos Deputados. Mas sinto falta dele na cartografia eleitoral paulista, em que ele funcionou como uma baliza fincada no território da direita.
Contrapondo-se a Maluf, os partidos do centro e da esquerda tinham um parâmetro negativo para se posicionar. PT e PMDB (e depois de 1988 também o PSDB) eram adversários no primeiro turno, mas somavam forças no segundo, justamente para derrotar a direita que o malufismo representava.
Foi assim desde 1988, com a eleição da então petista Luíza Erundina à Prefeitura paulistana. Não havia ainda segundo turno. Mas o eleitorado tucano, na reta final, desovou seus votos em cima dela, por estar mais bem posicionada nas pesquisas para derrotar Maluf. Simpatizantes e eleitores do PSDB deixaram seu candidato, José Serra, ao relento. Foi a mais maciça operação de voto útil na história eleitoral do município.
Em 1998, na eleição para governador, a petista Marta Suplicy, fora do segundo turno, deu publicamente seu apoio a Mário Covas, e nada exigiu em troca. A prioridade era, novamente, a de derrotar Paulo Maluf.
A questão não era apenas ideológica, que levava à construção de uma coalizão oficiosa e anticonservadora. Era também moral. Maluf já era objeto de acusações que manchavam pesadamente sua imagem de homem público.
Ele desapareceu do cenário das viabilidades eleitorais em 2005. Preso pela Polícia Federal, permaneceu na carceragem por 40 dias. Até o eleitorado malufista descobriu que se tratava, possivelmente, de no mínimo um grande contraventor.
Com seu nome e sua fotografia no site da Interpol, objeto de um mandado internacional de prisão, caminhava rumo a um desfecho patético o controlador da Eucatex, que começara a subir na vida política por pagar as dívidas no Jóquei Clube do então ditador Costa e Silva. Foi presidente da Caixa Econômica Federal em São Paulo e depois prefeito nomeado.
No campo moralmente oposto, o PT nasceu, em 1980, com um sincero apego aos valores éticos. Algo esperado diante de sua primeira lista de filiados, que incluía Mário Pedrosa, Antônio Cândido, Sérgio Buarque de Holanda ou Perseu Abramo, raros monumentos de intocabilidade da história intelectual e política brasileira.
A respeito, há um episódio na época não publicado e hoje pouco lembrado. Alguns meses depois das eleições de 1982, e só com um punhado de petistas eleitos, determinada parlamentar, em crise conjugal, arrumou um namorado mais jovem e, com o carro oficial a que tinha direito, tomou o rumo de Buenos Aires. Lula, informado, conseguiu interceptá-la e exigiu que ela interrompesse a viagem e passasse por São Bernardo para uma conversa séria. As relações dela com o marido não eram questão partidária. Mas “onde já se viu fazer uma viagem particular com um carro oficial”?
Havia em 1988 uma forte raiz de moralidade quando um grupo de peemedebistas — Mário Covas, Fernando Henrique Cardoso, Franco Montoro — sentiu-se incomodado dentro de um partido que que passara, em São Paulo, para o controle do então governador Orestes Quércia. Passavam a circular sobre ele informações tão negativas quanto às que pesavam sobre Maluf. Foi quando esses dirigentes romperam com o PMDB e fundaram o PSDB.
No ano seguinte, com as primeiras eleições diretas para presidente, o PSDB subiu ao palanque de Lula no segundo turno. Mário Covas, que não se classificara para a rodada final da disputa, liderou seu partido. A prioridade era derrotar Fernando Collor de Mello, a quem, aliás, Paulo Maluf apoiava.
Digamos que hoje essa convivência entre petistas e tucanos seria impensável. Nos dois campos a bandeira da ética está bem chamuscada (mensalões mineiro e da Papuda, cartel metro-ferroviário paulista). Mas ocorreu um outro processo paralelo dentro das duas siglas. Em lugar de se pensarem como formuladores de projetos políticos, petistas e tucanos passaram a privilegiar suas máquinas para disputar eleições. Na corrida ao Planalto, o PSDB ganhou duas, e o PT, três.
Essa transformação da atividade partidária em esforço mercadológico com conteúdo eleitoral acirrou-se com a chegada das redes sociais e com a existência de soldados obedientes, qualificados na tarefa de desumanizar o outro lado. Não há mais propriamente adversários. Há inimigos, que precisam ser politica e moralmente destruídos.
Passamos, então, a conviver com um sucessão de indignidades. Foram certamente os tucanos que espalham a falsa capa da revista Fortune, em que Lula aparece como dono de uma fortuna de US$ 5 bilhões, investida em gado. E foram claramente os petistas que associam o PSDB à apreensão de um helicóptero carregado de cocaína, ilação claramente desmentida pelo inquérito da Polícia Federal.
Essa construção do “outro” como ligado a formas explícitas de banditismo se esparrama por alvos que não estão diretamente envolvidos na sucessão presidencial. Quem matou o cinegrafista da TV Bandeirantes? Nas primeiras horas, qualquer resposta que não responsabilizasse a polícia era recebida como uma falta de lealdade para com a chamada sociedade civil organizada. A seca provoca a falta de água nos reservatórios? Se há risco de racionamento de eletricidade, é “incompetência do PT”. Mas se o risco for o de racionamento no fornecimento de água, “a incompetência é dos tucanos”.
Eu por vezes me coloco no lugar de algum historiador do futuro, que, dentro de um século, procurará restituir a maneira pela qual se fazia política no ano da graça de 2014. Caso ele pesquise apenas o Facebook, terá a impressão de que o país atravessou uma guerra civil de perfil sandinista ou bolivariano. Mas se pesquisar de que maneira o país se transformava a partir de políticas sociais aplicadas desde 1994, ficará assustado pela coincidência de resultados dos tucanos e petistas.
Um exemplo. É bobagem bater na tecla do Bolsa Família como propriedade de um partido ou do outro. O programa nasceu simultaneamente dentro dos dois, em Campinas, com Magalhães Teixeira (prefeito do PSDB), no Distrito Federal, com o então governador Cristóvão Buarque, na época petista, e Antônio Palocci, então prefeito petista de Ribeirão Preto. Foi nos anos 90, e o DNA é compartilhado.
É também bobagem insistir no papel do Estado. PT e PSDB divergem, sobretudo porque a proposta petista de socialismo, objeto de divergências entre correntes internas e aos poucos abandonada, pressupunha o reforço do papel do Estado no sistema de produção. Os tucanos promoveram generalizadas privatizações. Mas deixaram para os petistas, já no governo Dilma, um programa de concessões (estadas, aeroportos) que quebra o tabu segundo o qual só as empresas públicas teriam autonomia para enfrentar os grupos privados e, com isso, promover o bem comum.
O pobrezinho do historiador de daqui a um século ficaria ainda confuso com as alianças partidárias operadas por petistas e tucanos. Sarney frequentou os dois barcos. Antônio Carlos Magalhães foi um homem poderoso nos dois mandatos de FHC, enquanto Collor e Maluf estão hoje num barco comandado pelo PT.
E o mesmo historiador se assustaria com o fato de os marqueteiros terem se transformado em porta-vozes das conveniências partidárias, usurpando o lugar dos militantes e acabando com a antiga prática da discussão de documentos em diretórios zonais, distritais, regionais ou nacional.
Em outras palavras, a política perdeu muito em termos de qualidade.
Há também um novo timing das campanhas. E o fato de elas se lançarem de forma precoce acaba por envenenar qualquer debate em torno de tema importante que sociedade ou a mídia levantam ou que seja objeto de tramitação no Congresso.
Dilma Rousseff é candidata a sua própria sucessão desde fevereiro do ano passado. Foi quando Lula declarou que não procuraria voltar à Presidência. Os demais blocos, bem mais lentos em suas reações, também acabaram por antecipar a saída às ruas, com Eduardo Campos, Marina Silva e Aécio Neves. Tomando a dianteira, o PT foi mais competente — e também sofreu mais com a erosão em sua imagem nas manifestações de junho.
Mesmo assim, discute-se pouco qual é a consistência realmente de esquerda da política econômica do governo federal, qual o conteúdo partidário da política energética (Lobão, Belo Monte). São questões irrelevantes para os petistas mais agressivos, mais numerosos e mais competentes no Facebook. O que realmente interessa, segundo uma pauta redigida por Lula, é o projeto de poder.
A polarização radicaliza um país cuja divisão retórica recente se sobrepõe, em outros planos e sem coincidir com elas, às divisões históricas entre ricos e pobres.
Fomos demasiadamente longe nesse caminho. Nem que ressurgisse com um outro nome próprio ou com um prontuário judicial menos comprometido, nenhum novo Paulo Maluf seria capaz, por sua presença, de levar petistas e tucanos a se verem como realmente o são. A saber, autores de muitíssimos pecados, mas também arquitetos de transformações extremamente positivas que o país sofreu nas últimas duas décadas.
(Original aqui.)
Meu caro Mestre! Obrigado por mais esta aula de história política recente de nosso Estado.
Esclarecedor e merece ser divulgado para quantos puderem a ela ter acesso. Farei a minha parte neste particular. Forte abraço!
Obrigado, Rubens! Volte sempre. Abraços!