Compete ao Direito mudar o mundo (?)

Os filósofos limitaram-se a interpretar o mundo de diversas maneiras; o que importa, porém, é transformá-lo. (Karl Marx, 11ª Tese sobre Feuerbach, 1845)

Hoje o dia foi interessante.

Na parte da manhã, palestra na Faculdade Projeção em Sobradinho (DF) com o prof. Alex Potiguar sobre os direitos fundamentais, no âmbito do Seminário “25 Anos da Constituição Federal”. Em determinado momento, mais ao final da sua palestra, o professor falou a respeito do fato de que o Direito deve ser um mecanismo contramajoritário, ou seja, um mecanismo de alteração do status quo, um mecanismo que possa trazer efetivas mudanças sociais – e, neste contexto, foram citadas as decisões do Supremo Tribunal Federal a respeito da união homoafetiva, do feto anencefálico e das cotas raciais, todas elas decisões que, independentemente da opinião de cada um, servem para dar uma “chacoalhada” na sociedade, criando nela mudanças.

À noite, aula de TCC 1 (Trabalho de Conclusão de Curso 1 – para quem não sabe, disciplina na qual é feito o projeto da monografia final, chamada de TCC 2). Após a aula, conversa com dois alunos a respeito de temas relacionados ao Direito Eleitoral – disciplina que ministro e que tem total relação com minha área de formação (Ciência Política). E novamente veio à tona a ideia de mudança sócio-jurídica, ao conversar com um destes alunos mais demoradamente e chegarmos à (rápida) conclusão de que as estruturas jurídicas que definem o direito eleitoral de maneira geral, e os direitos políticos de maneira específica, são as mesmas dos últimos 200 anos.

Retornando para casa, comecei a refletir a respeito do quanto o Direito se cristalizou e, ao meu ver, se limitou no que diz respeito aos direitos políticos. De maneira rápida, o que temos hoje – democracia representativa por meio de eleições de representantes, e isso definido como um direito do cidadão – se originou com a Revolução Americana de 1776 e se oficializou com a Constituição Americana de 1787, vindo tal ideia a ser reforçada com a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 e com a Constituição Francesa de 1791. Mas de lá para cá, o que mudou?

Claro, ampliou-se o eleitorado – fim da escravidão, fim do voto censitário, direito de voto às mulheres, direito de voto dos analfabetos, igualdade no peso do voto, proliferação (exagerada) de partidos políticos… Mas o cerne permaneceu o mesmo: de maneira geral, atualmente considera-se que democracia e representatividade política se obtêm com eleições, nada mais além disso. Mas ao lançarmos um olhar para a realidade brasileira – e, por que não dizer, mundial – percebe-se o quanto esta definição de democracia e de representação é limitada. Basta você, leitor, se perguntar: em quem você votou na última eleição geral, em 2010; você se lembra? Caso se lembre, e caso seu candidato tenha vencido, você acha que ele o representa? Qual o vínculo que você tem com seu representante na atualidade? Acredito que, de maneira geral, as pessoas responderão a tais questionamentos de uma maneira não muito positiva (considerando-se como positivo a lembrança de quem recebeu o voto e a ideia de que tal pessoa, caso tenha sido eleita, representa o eleitor).

E é nesta breve reflexão que, apropriando-me da frase de Marx, vejo o papel antirevolucionário que o Direito desempenhou, na esfera política, nos últimos 200 anos: em vez de se tornar um mecanismo contramajoritário, capaz de realizar efetivas mudanças sócio-políticas, passou a ser um mecanismo de estabelecimento e de fortalecimento de uma espécie de democracia que não garante a efetividade do direito político do cidadão, e não garante porque não cria laços representativos entre eleitor e eleito. Basta fazermos a pergunta: como se define democracia? Não tenho nenhum dado empírico em mãos, mas pelo que vejo em minhas aulas percebo que a maioria dos alunos, em todos os semestres, têm a tendência a identificar democracia com eleições, reduzindo uma questão valorativa a um mero mecanismo jurídico que visa à satisfação de uma exigência formal.

É aqui que vejo um verdadeiro nicho para a área acadêmica, o Direito Eleitoral, e também para o aspecto prático da vida de cada um, que é o direito político e sua concretização efetiva. O nicho acadêmico se encontra no fato de que poucos têm sido os trabalhos de conclusão de curso que tratam de temas relacionados ao Direito Eleitoral, e o aluno que se embrenhar por este ramo terá inúmeros desafios a serem vencidos – basta pensar em termos de sistema partidário, sistema eleitoral, financiamento de campanha, propaganda eleitoral, dentre outros, culminando com questões relacionadas à representação de maneira particular e ao tipo de democracia que compete ao Direito Constitucional e ao Direito Eleitoral construírem, de maneira geral. Mas vencer tais desafios é uma brecha que pode ser muito bem aproveitada em termos acadêmicos.

Já no aspecto prático, necessita-se pensar a respeito de tais temas porque, mesmo após 200 anos da existência formal do direito político, acredito estarmos longe da efetividade deste direito, não apenas no Brasil, mas também no mundo. E talvez seja aqui que a frase de Marx, apresentada no título desta postagem, se encaixe: não há mais tempo para apenas descrever o aspecto político-constitucional de nosso país; é necessário alterá-lo, efetivando-o e fazendo com que efeitos sejam produzidos. E isso só pode acontecer a partir do momento em que aqueles da área jurídica, juntamente com aqueles da área política, tomarem a iniciativa e assim o fizerem. Que a inércia que nos impele à manutenção do status quo, reforçada por discursos ideológicos camuflados de que “sempre foi e sempre será assim” e de que “não há alternativa”, possa ser vencida, levando nossa sociedade, por que não, a um patamar jurídico-político superior ao atualmente em vigor.

0 comentário em “Compete ao Direito mudar o mundo (?)”

  1. Ótimo artigo. Sempre tive essa visão em relação a este tema. Votar não é simplesmente “escolher” o representante e que o resto fique a cargo do destino. Votar vai além. Não irei aprofundar, até porque abordarei em meu TCC este assunto, entretanto é preciso uma melhor abordagem por parte dos acadêmicos e da sociedade, em especial, sobre esse importante assunto.

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  2. Sem entrar no mérito da importância do Direito, preceito indispensável na evolução da sociedade, mas, é difícil não ver o Direito, esse Direito que muitos espalham, como um calhamaço de regras que muitos, sentados em cima, orgulham-se de saber repetir literalmente o que foi escrito por outros homens, tempos atrás… Assim, qual a finalidade do Direito senão a mudança na sociedade, rumo à igualdade, não só de direitos, mas também de oportunidades?? É muito bom ver alguém que se ocupa do saber jurídico preocupado com a finalidade de tal, e não só a mensuração do quanto cada aluno sabe sobre o tema… Deve ser daí a sua popularidade como professor, Matheus….

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  3. Professor e Amigo Matheus,

    somente agora consegui ler seu texto. Excelente!

    Gostaria de lhe parabenizar pelo trabalho e pela iniciativa. Afinal, o direito é uma ciência social aplicada, e, somente pode gerar bons frutos se for uma ciência séria e aplicada à nossa realidade social.

    O direito não é, não deve ser, e nem nunca será a solução de todos os problemas. Da mesma forma, os problemas quase nunca teriam solução se não fosse, em grande parte pelo direito.

    Forte abraço

    Alex Potiguar

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    • Grande prof. Alex Potiguar, muito obrigado pela sua visita em meu blog, a qual muito me honra. Faço minhas as suas palavras, já que talvez seja possível afirmar que tudo é tocado pelo direito, que por sua vez perpassa todos os ramos da vida social. Obrigado pela presença e volte sempre, pois és extremamente bem-vindo. Forte abraço!

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