Logo após golpe, ato institucional proibiu Justiça de rever cassações. Em 1965, governo militar ampliou total de ministros para garantir maioria.
Criado para ser o guardião da Constituição, o Supremo Tribunal Federal (STF) sofreu duro revés ao ter sua composição ampliada de 11 para 16 magistrados um ano após o golpe militar – o objetivo era garantir maioria a favor do governo e, assim, legitimar as normas criadas pela ditadura. Com poderes restritos, o tribunal se tornou um “enfeite institucional”, na definição do professor Ivan Furmann, pesquisador das relações entre os poderes Executivo e Judiciário durante o período de governo militar.
Dias depois do golpe, a publicação do Ato Institucional (AI-1) proibiu o Judiciário de analisar questionamentos contra a cassação de mandatos e suspensão de direitos políticos.
Na avaliação do doutor em direito Ivan Furmann, professor de história do direito do Instituto Federal do Paraná, em Palmas (PR), o Judiciário perdeu a “autonomia” com o AI-1, norma que permitiu aos militares alteraram a Constituição vigente.
“O golpe de 64 afetou imediatamente o Judiciário, quando violou um dos princípios fundamentais do Estado contemporâneo, que é o princípio da separação dos poderes. Afirmo isso devido aos imediatos expurgos de militares que se opuseram ao golpe, as cassações arbitrárias de políticos e outras formas de perseguição. O Poder Judiciário não tinha autonomia plena sobre as violações de direitos que ocorriam no Brasil imediatamente após o golpe”, destacou o professor.
Um dos exemplos da falta de autonomia é narrado no livro “A ditadura militar e os golpes dentro do golpe”, de Carlos Chagas, que relata um episódio de novembro de 1964, no qual o então governador de Goiás, Mauro Borges, major do Exército, foi acusado de conspirar contra o regime, mesmo apoiando a ditadura.
Para tentar evitar um processo por subversão comunista, Borges entrou com um habeas corpus (tipo de ação judicial para garantir a liberdade) no Supremo.
Por unanimidade, o tribunal garantiu a liberdade do governador, relata Chagas. Dois dias depois, os militares decretaram intervenção federal no estado para tirar o poder do governador.
“O ministro Ribeiro da Costa, presidente do Supremo Tribunal Federal, acentuou ontem que se pretende atualmente fazer com que o STF dê a impressão de ser composto por onze carneiros que expressam sua debilidade moral, fraqueza e submissão”, cita o livro de Carlos Chagas ao reproduzir uma reportagem do jornal “Correio Braziliense” do dia 27 de novembro de 1964.
Para evitar constrangimentos em relação ao Supremo, o regime militar ampliou o número de ministros da Corte de 11 para 16, conforme Ivan Furmann.
“Progressivamente os tribunais superiores foram sendo ocupados por magistrados simpáticos ou complacentes ao regime. Junto ao STF, em especial, diversos ministros apoiaram o golpe, mas não era unanimidade. […] A intervenção no STF iniciou-se no AI-2, quando foram criadas cinco cadeiras novas e nomeados ministros alinhados ao regime militar. […] Não há dúvidas que não só a estrutura do STF quanto sua composição foram afetadas de forma significativa durante o regime militar”, diz o especialista.
A situação se agravou com a publicação do AI-5, que suspendeu a validade de habeas corpus para crimes políticos. “Após o AI-5 as funções do STF tornaram-se mais retóricas do que práticas. A existência de um Supremo Tribunal Federal sem o poder para defender garantias e direitos fundamentais demonstra que, ao menos naquele tempo, o tribunal tornou-se um enfeite institucional”, afirmou o professor.
Ministros cassados
Três ministros do Supremo foram cassados, por meio de aposentadoria compulsória, por discordarem das medidas mais severas adotadas pelo governo militar com o AI-5.
“Hermes Lima, Victor Nunes Leal e Evandro Lins e Silva eram considerados de esquerda pelos militares. Ao ouvirem o ato que os cassou – pela “Voz do Brasil” – outros dois ministros saíram por não concordarem com a aposentadoria compulsória: o então presidente da Corte, Gonçalves de Oliveira, e aquele que seria o seu sucessor na Presidência, Antônio Carlos Lafayette de Andrada”, relata material de arquivo do STF.
Um novo ato institucional, o AI-6, foi então publicado em fevereiro de 1969 para que a composição do tribunal voltasse a ser de 11 ministros.
Em um episódio registrado dois anos depois, em 1971, um ministro do Supremo, Adauto Lúcio Cardoso, abandonou o plenário ao ser o único contrário à lei da censura prévia, editada pelo governo Médici. A regra permitia que censores ocupassem as redações dos jornais e vetassem a publicação de textos. Cardoso renunciou ao cargo de ministro do tribunal.
Resquícios da ditadura
O professor Ivan Furmann destaca que os resquícios do regime militar permaneceram no Supremo nos anos seguintes devido à manutenção de ministros indicados por militares no tribunal.
“A composição do mesmo tribunal seguiu inalterada na passagem da ditadura para a democracia, os mesmos ministros nomeados no período do regime militar permaneceram. Os últimos ministros nomeados pela ditadura a sair do STF foram José Carlos Moreira Alves, nomeado por Geisel e que deixou o tribunal em 2003, e Sidney Sanches, nomeado por Figueiredo e que saiu em 2003. Portanto, 15 anos após a Constituição de 1988”, disse o professor.
Furmann afirma que a principal “herança” da ditadura no Supremo é o modo de indicação de ministros pelo presidente da República e o fato de os mandatos dos ministros não terem prazo, o que “faz com que nomes se prolonguem décadas na corte, mesmo após nomeações polêmicas”.
“Acredito que um grande resquício da ditadura é a forma de indicação de novos ministros, ainda dependente do presidente da República. Ou seja, o órgão máximo do Poder Judiciário tem seus membros escolhidos pelo chefe do Poder Executivo. […] O argumento de que o povo brasileiro não tem capacidade de escolher seus representantes foi o que mais saiu da boca dos militares da ditadura.”
‘Iniquidades’
Em 2010, o ministro Celso de Mello, atualmente o mais antigo dos ministros do Supremo (indicado em 1989), se referiu às intervenções da ditadura no tribunal em voto lido no plenário durante o julgamento da Lei da Anistia.
Mello afirmou que, ao impedirem a atuação do Judiciário, os atos institucionais impostos pelo governo militar, foram um “manto protetor das iniquidades” que, segundo ele, foram cometidas pela ditadura.
“O bill de indenidade [imunidade] estabelecido pela legislação de exceção, verdadeiro manto protetor das iniquidades cometidas com fundamento nos atos institucionais, impedia que o Judiciário revisse os atos excepcionais e, desse modo, contivesse a prática expansiva do abuso do poder”, disse Celso de Mello.
Em 2010, o Supremo validou a Lei da Anistia, de 1979, e entendeu que não cabia ao Judiciário rever o acordo político que resultou na anistia de militares e guerrilheiros na transição do regime militar para o democrático.
Contrário à revisão da Lei da Anistia, Celso de Mello destacou no voto que “o regime de exceção, buscando a sua própria preservação institucional e sobrevivência política, vedou o controle jurisdicional”. O ministro lembrou que a situação perdurou até 1978, quando uma emenda constitucional revogou os atos institucionais e restabeleceu o poder do Judiciário.
(Original aqui.)