A expressão “herança maldita” é recorrentemente utilizada pelo partido no poder para se referir aos seus antecessores. Será que esta é a verdadeira herança?
Teremos, na próxima legislatura, 28 siglas representadas na Câmara Federal.
A expressão “herança maldita”, de tão banalizada, virou carimbo para marcar a feição de governos. Foi inicialmente usada por Lula, em 2003, para dizer que recebeu do ciclo tucano, comandado por Fernando Henrique, um “país quebrado”. Nos últimos tempos, o termo tem se virado contra o PT, colado aos escândalos de corrupção.
Mas a síndrome da maldição de governos, sejam quais forem suas posições no arco ideológico, tem origem na política. Basta anotar a coletânea de mazelas que se extrai do pleito eleitoral, entre as quais se incluem as coligações proporcionais, a modelagem dos programas eleitorais, a infidelidade partidária, a proliferação de siglas, a figura do senador suplente e o próprio estatuto da reeleição.
A “herança maldita” das gestões é filha da “herança política”. Afinal de contas, as representações do povo e dos Estados no Parlamento, ao lado dos governantes do Executivo, carregam para suas atividades o ônus de velhas práticas e instrumentos defasados da política.
Veja-se a primeira contrafação: dos 513 deputados federais, apenas 35 (6,8%) receberam sufrágios suficientes para se elegerem sozinhos, sem precisarem do adjutório de coligações ou do quociente eleitoral de legendas. Os restantes 478 ganharam o mandato pela soma dos votos dados à legenda ou de outros candidatos, os chamados “puxadores de voto”. Em 2006, apenas 32 tiveram votação suficiente para ganhar o cargo e, na eleição seguinte, em 2010, o número foi o mesmo que se tem hoje.
Ora, ser deputado com uma votação própria constitui primado do sistema de representação. Seria, portanto, lógico que as vagas de cada Estado fossem preenchidas pelos mais votados. Como isso não ocorre, ganha vulto a aberração do mandato “caroneado”, fruto do sistema de coligações proporcionais. O eleitor vota em um candidato e este puxa outro, de baixa votação; assim, a representação fica distorcida.
Veja-se o absurdo: o deputado Mendes Thame, do PSDB-SP, obteve 106,6 mil votos e não se elegeu; Fausto Pinato, do PRB-SP, com 22.097 votos, chegará à Câmara.
A segunda mazela surfa na onda do Estado-Espetáculo, cujos tentáculos se voltam para a visibilidade dos atores políticos. Arrumam-se palcos para o desfile de candidatos, cujos discursos são adornados de autoglorificação e floreios com aparente embalagem de programas e promessas. De um lado, os candidatos majoritários, com espaços mais largos, apresentam-se sob a batuta dos marqueteiros, brandindo feitos e desfraldando bandeiras.
Este é um momento cruel para a verdade. Simulação e dissimulação emolduram o jogo eleitoral. Cada qual se veste com o manto de herói, mocinho, salvador da pátria, benfeitor, extraordinária figura do bem; já o diabo, a destruição, a perversidade, a corrupção, a maldição são coisas guardadas no baú do adversário.
Debates entre candidatos majoritários, que deveriam propiciar comparações entre propostas, são engessados por regras e, quando permitem o confronto direto, nivelam-se por baixo, fazendo fluir acusações recíprocas. Ao final, a carga negativa acaba ofuscando os poucos minutos de bom senso e racionalidade. Já na esfera de candidatos proporcionais, o desfile de caras, bocas e caretas é um espetáculo de non-sense.
Na torrente de incongruências, a liberdade dos partidos de optar nos Estados por rumos diferentes dos seguidos por eles na esfera federal afigura-se como estapafúrdia. É o que se vê. Conveniências pessoais, disputas tradicionais entre grupos e tradição familiar determinam as pedras no tabuleiro eleitoral dos Estados, fazendo com que os parceiros nacionais se transformem em adversários locais. Não por acaso, a força dos partidos estiola-se ante tantas equações para a competição política.
Ademais, a multiplicidade de siglas funciona como uma engrenagem defeituosa. Teremos, na próxima legislatura, 28 siglas representadas na Câmara Federal.
A extravagância se deve à derrubada da clausula de barreira, em 2006, pelo Supremo Tribunal Federal. Acolhendo parecer do ministro Marco Aurélio, de que a legislação provocaria o “massacre das minorias”, o estatuto que dificultava a criação de partidos foi extinto, dando lugar a currais partidários para todos os gostos. Alguns desses estabelecimentos acabam propiciando parcerias esfumaçadas com a finalidade de melhorar o “pasto” dos rebanhos. Sem cláusula de barreira, é possível enxergar, os próximos anos, mais 20 siglas do toma-lá-dá-cá. .
E o que dizer de um senador sem um voto sequer? É um contrasenso ver chegar à Camara Alta um suplente sem sufrágio no lugar do titular.
Na composição ministerial, tem sido comum o convite para senadores ocuparem cargos de ministros ou, ainda, de candidatos aos governos estaduais. É quando o suplente ascende ao posto. Eles são, via de regra, figuras de porte empresarial/negocial e alguns ganham o assento em decorrência de sua disposição em bancar financeiramente a campanha do titular. Eis a charada.
O mais lógico seria a ocupação do cargo pelo segundo candidato mais votado no Estado. Eis uma decisão muito esperadas da corte senatorial.
Para fechar o circuito das mazelas, deparamo-nos com o estatuto da reeleição. Em democracias consolidadas, a reeleição pode ser um eixo de aperfeiçoamento democrático, no entendimento de que o mandato de quatro anos seria insuficiente para um partido no poder concluir sua obra.
Em países de instituições políticas e sociais em processo de consolidação, como é o nosso caso, a reeleição bafeja os governantes, eis que, sem se afastarem do posto, usufruem do simbolismo e da força inerente ao cargo.
Essa alavancagem contribui para entortar a régua da igualdade entre disputantes. Um mandato de cinco anos, sem reeleição, cairia melhor na moldura de nossa democracia, pois propiciaria a renovação de mandatários e a oxigenação das estruturas governativas.
Essa é a farta “herança maldita” que o Brasil precisa banir.
(Original aqui.)