Hoje anuncia-se o novo presidente da Petrobras. Ao que tudo indica, o atual presidente do Banco do Brasil irá assumir o cargo. Como afirma Thaís Heredia, será algo como “se não tem tu, vai tu mesmo”. E o G1 afirma que “estatal trocou ‘seis por meia dúzia’“. Fiquei com a pergunta na cabeça: é possível mudar a estrutura política do Brasil?
Essa “mudança” na Petrobras é bem semelhante à frase de Tancredi, personagem da obra “O leopardo”, de Lampedusa. Diz a frase completa:
A não ser que nos salvemos, dando-nos as mãos agora, eles nos submeterão à República. Para que as coisas permaneçam iguais, é preciso que tudo mude.
Ou seja, troca-se seis por meia dúzia, afirma-se que algo mudou sendo que, na verdade, nada muda (e, no caso específico da Petrobras, sabe-se muito bem quem continua(rá) mandando na estatal). E aqui tomo a liberdade de ampliar o raciocínio e de dizer (com o perigo de toda generalização) que nada muda não apenas na estatal mas no país como um todo, o qual – perdoem-me aqueles que discordarem – dá a impressão de estar cada vez mais se afundando.
Vem então à mente a pergunta: o que é necessário para que ocorram reais mudanças no Brasil? Ao meu ver, existem dois pré-requisitos básicos: 1) Alterações legais; 2) Alterações na mentalidade do cidadão. E pra mim – acreditem – a mudança mais fácil, ou melhor, menos difícil, é a primeira.
Hoje no Brasil é o povo que manda? Começo rapidamente pela Constituição brasileira. Logo em seu art. 1º o texto afirma que o Brasil é um “Estado democrático de direito”. Ou seja, somos uma democracia. Essa democracia é fundada na cidadania (art. 1º, II) e pressupõe que “todo o poder emana do povo” (art. 1º, parágrafo único). Então sim, é o povo que manda. Ao menos do ponto de vista jurídico.
Passemos rapidamente os olhos por um conceito crucial nessa argumentação, que é o conceito de poder. O que é o poder? Bobbio, um jurista italiano, afirma que poder “é a capacidade de agir e de produzir efeitos”. Em outras palavras, João manda em José se: a) João tiver algum meio (é a capacidade de agir); b) José fizer o que João quer que ele faça (é a capacidade de produzir efeitos). Há aqui, entretanto, um detalhe importantíssimo: haverá relação de poder se aquele que sofre a ação alterar seu comportamento de acordo com a vontade de quem age. Ou seja, João realmente mandará em José apenas se José quisesse realizar a ação “A” no momento inicial, antes de João fazer algo em relação a ele, e depois decidisse realizar a ação “B” após João agir sobre José. O que quero dizer é o seguinte: se José já quisesse fazer aquilo que João queria que José fizesse, não se poderia falar em poder, porque José já estaria inclinado a agir daquela maneira.
Vou dar um exemplo mais prático, que sempre utilizo em minhas aulas. Um pai quer que seu filho, que está jogando videogame, vá estudar. O filho, em um primeiro momento, não quer estudar – quer continuar jogando videogame. O pai age de alguma maneira sobre o filho – seja convencendo o filho da importância dos estudos para o futuro, seja dizendo que vai cortar a mesada, seja ameaçando dar-lhe uma surra. Depois da ação do pai, o filho deixa de jogar videogame e vai estudar. Voilà! Temos aqui uma relação de poder do pai sobre o filho. O pai a) Possui os meios (o convencimento, o dinheiro da mesada, a possibilidade de dar uma surra no filho) e b) Atinge seus objetivos (queria ver o filho estudando e ele foi estudar após a interferência do pai).
Agora atenção: e se o filho estivesse jogando e, por vontade própria, resolvesse estudar exatamente no momento em que o pai lhe falasse para ir estudar? O pai continuaria possuindo os meios e continuaria atingindo seu objetivo, mas não teria havido aqui a alteração do comportamento do filho – porque ele, filho, foi estudar por vontade dele própria, e não por ser convencido ou por se sentir ameaçado pelo pai. Portanto, nesse caso não houve relação de poder do pai sobre o filho.
Voltemos nossos olhos agora à democracia brasileira. Em uma democracia, pressupõe-se que o povo “mande” e o governo “obedeça” (uso aqui a palavra governo para identificar de maneira genérica todos os três poderes – Executivo, Legislativo e Judiciário – ainda que tecnicamente “governo” signifique apenas o poder Executivo). Ou seja, em uma democracia pressupõe-se que a vontade do povo seja concretizada. Agora juntemos isso – o conceito de poder – ao parágrafo único do art. 1º da Constituição: “todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”.
A primeira pergunta que faço a você, que já sabe o conceito de poder, é a seguinte: o poder realmente emana do povo? Ora, se o poder emana do povo, significa dizer que o povo deve exercer poder sobre o governo. Significa dizer que o povo deve a) Possuir os meios; e b) Atingir seus objetivos por meio da alteração do comportamento do governo. E, voltando ao parágrafo único do art. 1º da Constituição, a primeira opção de “mando” dada ao povo é por meio dos seus representantes – o que significa dizer que, em uma democracia, o povo deve mandar em seus representantes e estes devem obedecê-lo (estou aqui propositadamente deixando de lado a parte do “exercer o poder diretamente” – isso fica pra próxima).
Dito isso, refaço a pergunta: o povo manda?
Para mim, a resposta mais que óbvia é não, não manda. E não manda porque o sistema político-jurídico-eleitoral brasileiro impede a participação efetiva do povo. E quando digo aqui “participação efetiva” não estou, obviamente, me limitando à capacidade eleitoral ativa e passiva do cidadão – em outras palavras, ao direito de votar e ser votado, que estão claramente estabelecidos no art. 14 e seus parágrafos da Constituição brasileira. Estou aqui falando do ponto de vista político, ou seja, da possibilidade real do povo exercer seu poder sobre o governo, conforme o conceito apresentado acima. Ao meu ver, essa possibilidade não existe, já que não há nenhum vínculo jurídico – muito menos político – de controle do representante pelo povo.
Ora, se não há possibilidade efetiva do exercício do poder por parte do povo, não se pode falar em mudança, já que o povo não foi instado a participar, a definir os rumos da mudança. Somem-se a isso uma série de outros elementos, a respeito dos quais já falei aqui em outras oportunidades – partidos políticos, o sistema eleitoral, o sistema de financiamento de campanha, o acesso ao rádio e TV, dentre outros – que acabam se não impedindo, ao menos prejudicando o efetivo exercício do poder pelo povo.
Termino este texto por aqui, deixando para outra oportunidade a resposta ao segundo elemento que considero fundamental para que efetivamente ocorra algum tipo de mudança no Brasil – a mudança da mentalidade do cidadão. E a imagem abaixo (infelizmente) demonstra o que penso a respeito desse assunto.
O problema que cada vez mais,esta dificil de expressar uma opiniao propria de algum assunto, pois o governo sabe como jogar o povo contra o povo.
Concordo, Djalma. Esse é um problema grave. Essa ideia de “nós” e “eles” é terrível pro nosso país. E infelizmente me parece que o governo se utiliza muito dessa retórica atualmente.
Ótimo texto professor! Penso que fazemos parte de uma sociedade muito individualista; e enquanto persistir esse individualismo será difícil mudar alguma coisa nesse país.
Walker, é por aí. Concordo com você. Enquanto olharmos para nosso próprio umbigo e não tivermos a consciência de que um mínimo de participação pública/cívica é necessária, nada irá mudar. Um abraço e volte sempre!