Tenho iniciado meus textos com um breve comentário antes dos mesmos. Este será um pouco diferente: vamos direto ao texto e depois aos comentários.
“Os partidos do arco do poder […] têm cristalizado aquilo que se pode designar por ‘bloco central de interesses’, que se caracteriza por uma partidarização dos lugares de direção da administração pública, pela repartição de cargos nos lugares de conselhos de administração e chefias intermediárias de empresas públicas, sejam elas do Estado, da administração estadual ou municipal, e pela repartição de influências nos principais órgãos das magistraturas. Nesse processo de partidarização da administração e do setor empresarial do Estado não têm sido usados critérios de competência e mérito, mas sobretudo critérios de lealdade política e solidariedades várias.
“O Estado do ‘bloco central alargado’, que tem vindo a ser construído, é o que na literatura anglo-saxônica se designa por data hugging state, ou administração que ‘abraça’ os dados sobre a sua atividade e que, desta forma, evita o escrutínio público e a avaliação da qualidade das polícias públicas. O Estado opaco é o que não faculta informação sobre contratos públicos, não disponibiliza para escrutínio público indicadores sobre a atividade e desempenho dos seus serviços (na educação, segurança social e justiça, entre outros). O data hugging state é um Estado paternalista que trata os indivíduos como súditos, não cidadãos, incapazes de olharem criticamente para o seu próprio funcionamento.
“O Estado tem sido em larga medida capturado por interesses por duas razões distintas: financiamento partidário e falta de competências técnicas na administração pública. O mecanismo aqui é relativamente simples. Os grandes partidos políticos necessitam de avultados financiamentos e estes só podem ser obtidos através de financiamento de médias e grandes empresas. Estas atuam, racionalmente, no contexto da estrutura de incentivos vigentes. Visto que grande parte das licitações públicas não são verdadeiramente competitivas (pense-se no caso da contratação de obras públicas), é sempre favorável ter um tratamento amistoso por parte de quem, do bloco central de interesses, estiver no poder. A contrapartida desse financiamento é, em muitos casos, a tomada de decisão política enviesada no sentido favorável a esses interesses, sobretudo numa área – a decisão coletiva sobre grandes projetos de investimento público ou parcerias público-privadas – que é de difícil avaliação técnica e onde a própria elaboração de análises custo-benefício não é isenta de problemas metodológicos. Se adicionarmos a este primeiro fator a crescente falta de competência técnica na administração pública, que não consegue competir salarialmente com o setor privado nos quadros qualificados, perceber-se-á porque é que se têm tomado algumas decisões megalomaníacas de investimento de iniciativa pública.”
Creio que todos que lerem esse texto perceberão o quanto o autor foi feliz em retratar a atual situação política do Brasil. Padecemos, como se sabe, dos dois problemas acima apresentados – financiamento partidário, que corrompe os eleitos, e quadros políticos, e não técnicos, na administração pública. Problemas que sempre são apresentados como entraves ao pleno desenvolvimento do nosso país, ainda mais em épocas de reformas políticas como a atual.
Mas não. O texto acima não fala do Brasil. O trecho vem do livro Portugal: dívida pública e défice democrático, de Paulo Trigo Pereira (2012, p. 86-8 – com o texto devidamente adaptado do português de Portugal para o português do Brasil). Neste ensaio o autor faz uma interessante vinculação de causa-consequência entre a falta de democracia e os problemas fiscais do Estado português no auge da crise portuguesa (veja-se que o livro é de 2012).
Para quem não sabe, Portugal foi um dos países europeus que mais sofreu com a crise financeira de 2008-9, que começou nos EUA e se espalhou pelo mundo. Nesse sentido, em 2011 o país se viu obrigado a aceitar a intervenção da troika – comissão formada pelo Fundo Monetário Internacional, pelo Banco Central Europeu e pelo Comissão Europeia. Nessa intervenção foi estipulado uma série de compromissos de maneira a fazer com que o país cuidasse de suas contas públicas, já que o nível de endividamento do Estado estava elevadíssimo. Dentre outras ações, Portugal se viu obrigado a privatizar empresas públicas, a congelar investimentos públicos e, dentre inúmeras outras ações – tais como aumento de impostos – também foi obrigado a reduzir o valor pago de aposentadoria e também salários de servidores públicos.
Não entrarei aqui no mérito destas ações, até mesmo porque em 2014 a troika terminou sua “intervenção” em Portugal. Fato é que foram necessárias medidas drásticas para colocar as contas públicas portuguesas “de volta nos trilhos”. Mas fica aqui o alerta: o Brasil, com seu atual ajuste fiscal, seguirá o mesmo rumo de Portugal caso não dê atenção às suas contas públicas, por um lado; por outro, também não adianta colocar as contas em dia sem a participação cidadã, elemento fundamental em um Estado democrático de direito como se pretende nosso país. Nesse sentido, tomara que nossos governantes “abram o olho” com antecedência e pensem em médio-longo prazo, evitando fazer com que o país chegue ao ponto de ter de reduzir salários para poder pagar suas contas.