Você, leitor, talvez tenha se surpreendido com o título desta postagem. Deve estar se perguntando: afinal, qual a relação entre o pensador inglês Thomas Hobbes e tatuagens?
Para aqueles que não sabem, Hobbes é um autor do século XVII que fala sobre a formação do Estado. De maneira resumida, a teoria de Hobbes indica a existência de um suposto estado de natureza. Este estado corresponde ao momento em que as pessoas vivem completamente livres em comunidade. No estado de natureza não há a existência de um poder superior para administrar o território.
A consequência lógica para Hobbes é que nesta situação os homens entrariam em guerra de todos contra todos. O raciocínio é que em uma situação de “cada um por si”, é absolutamente necessário defender aquilo que é meu. E o que é meu só o é enquanto eu conseguir manter. Isto porque se outro ser humano — mais forte, mais inteligente, mais esperto, ou agindo em grupo — tomar o que me pertence eu nada posso fazer. E é assim porque, como dito antes, não existe a instituição Estado.
Mas o ser humano é racional. Portanto, para Hobbes o ser humano chegará à conclusão de que é melhor estabelecer um contrato com os demais para garantir a vida em sociedade. Neste contrato estarão estabelecidas cláusulas que irão dispor, muito sinteticamente, que um não pode “meter o bedelho” no que é do outro.
Além disso, nesse contrato todos concordam com a criação da instituição Estado. Será ele, o Estado, o responsável pela manutenção da ordem e pela garantia da paz. Isto é necessário para evitar justamente a guerra de todos contra todos. A partir do surgimento do Estado a sociedade sai do estado de natureza e tem início o estado de sociedade.
Percebe-se aqui que para Hobbes o importante é a garantia da segurança física de cada ser humano. Sua natureza não muda: os homens continuam sendo racionais e egoístas, querendo tudo para si mesmos. Mas se antes podiam tomar o que era dos outros — desde que fossem mais fortes —, no estado de sociedade isto não é possível. Porque se transgredirem a lei, o Estado os punirá. O medo da sanção, em geral, é maior que a “tentação” de obter o que é do outro.
Devem então os indivíduos se submeterem completamente ao Estado? Sim. O Estado é absolutista, ou seja, age “do jeito que bem entender”. E isto é necessário porque a garantia da ordem pressupõe a realização de ações que são moralmente condenáveis, mas necessárias. Portanto, para Hobbes as pessoas não podem mais “fazer justiça com as próprias mãos”. Isto é função do Estado, já que ele foi criado exatamente para isso.
Aí você me pergunta: “Ok, Matheus. Entendi o pensamento do Hobbes. E o que isso tem a ver com tatuagens?”
Pois tem tudo a ver, meu amigo.
Todos vocês devem ter visto a notícia do rapaz que teve recentemente a testa tatuada. Muitos de vocês, talvez, tenham até mesmo aplaudido o acontecimento: “ele fez por merecer”. Esta foi uma das frases que mais li nos dias subsequentes ao fato. Muita gente dizendo que se o rapaz era/é bandido, mereceu sofrer. Aquela velha história de que “direitos humanos são para humanos direitos”.
Não entro no mérito desta questão, porque isso é coisa para outro debate. (Ainda que deixe claro que a frase “direitos humanos são para humanos direitos”, ou a frase “ele fez por merecer”, e quaisquer outras assemelhadas, demonstram uma insensatez imensa por parte de quem as profere.) A questão que levanto aqui é que Hobbes enxergava uma “saída” do Estado absolutista que ele mesmo propôs. E tal “saída” aparecia quando do não funcionamento do Estado.
Por outras palavras, significa dizer que se o Estado não conseguisse mais fazer aquilo para o que foi criado — a garantia da segurança —, o contrato estava desfeito. Se o Estado não cumprisse com suas obrigações, também os cidadãos estariam desobrigados em cumprir as ordens do Estado. Neste caso os indivíduos teriam o direito — talvez até mesmo a obrigação — de recriar o Estado por meio de um novo contrato.
Mas no período entre o fim de um contrato e o início do outro as pessoas voltariam ao estado de natureza. É claro, com o retorno também da guerra de todos contra todos.
O que se vê na atualidade talvez seja exatamente isso: o Estado brasileiro, em certa perspectiva, se desfazendo. Claro, não se desfazendo como instituição, porque a instituição ainda está lá. Mas se desfazendo no que diz respeito à sua legitimidade de atuar como instituição garantidora da ordem pública. Em uma perspectiva mais prática, talvez o cidadão não veja mais o Estado brasileiro como capaz de assegurar a segurança coletiva que todos desejamos. E em uma perspectiva mais abstrata, talvez inconscientemente o cidadão não veja mais o Estado brasileiro como capaz de o representar e de agir em seu nome no estado de sociedade.
As pessoas fazem justiça com as próprias mãos quando não confiam naquela que lhes oferece o Estado. Sentem que precisam se proteger e purgar os pecados do mundo. […] E serão brutais segundo suas tradições e superstições.
Quando isso acontece, meus caros, é complicado. Só a confiança do cidadão no Estado pode fazer com que esta instituição atue de maneira legal, legítima e, acima de tudo, democrática.
O que você pensa sobre o tema? Deixe abaixo seus comentários ou entre em contato para debatermos sobre o assunto.
Um abraço a todos e até a próxima.
Prof. Matheus Passos
PS.: fonte da citação acima.