Impeachment ou não?

Ultimamente muito tem sido divulgado, especialmente nas redes sociais, a ideia de realização de um impeachment da atual presidente da República. E logicamente muitos erros são também divulgados, com muito “senso comum” e com muita informação desencontrada.

Para tentar colaborar com o debate, publico a seguir pareceres de dois eminentes juristas brasileiros, Ives Gandra da Silva Martins e Dalmo de Abreu Dallari. A ideia é apresentar argumentos pró ou contra o impeachment, de maneira que você possa, em primeiro lugar, compreender realmente como funciona o processo de impeachment e, em seguida, decidir se apoia ou não a proposta. Leia os textos e participe da enquete ao final da postagem!

Obs.: os textos a seguir foram colocados nesta ordem devido à data de sua publicação – 03/02/2015 e 12/02/2015, respectivamente.

1º texto

A hipótese de culpa para o impeachment

Pediu-me o eminente colega José de Oliveira Costa um parecer sobre a possibilidade de abertura de processo de impeachment presidencial por improbidade administrativa, não decorrente de dolo, mas apenas de culpa. Por culpa, em direito, são consideradas as figuras de omissão, imperícia, negligência e imprudência.

Contratado por ele – e não por nenhuma empreiteira – elaborei parecer em que analiso o artigo 85, inciso 5º, da Constituição (impeachment por atos contra a probidade na administração).

Analisei também os artigos 37, parágrafo 6º (responsabilidade do Estado por lesão ao cidadão e à sociedade) e parágrafo 5º (imprescritibilidade das ações de ressarcimento que o Estado tem contra o agente público que gerou a lesão por culpa – repito: imprudência, negligência, imperícia e omissão – ou dolo). É a única hipótese em que não prescreve a responsabilidade do agente público pelo dano causado.

Examinei, em seguida, o artigo 9º, inciso 3º, da Lei do Impeachment (nº 1.079/50 com as modificações da lei nº 10.028/00) que determina: “São crimes de responsabilidade contra a probidade de administração: 3 – Não tornar efetiva a responsabilidade de seus subordinados, quando manifesta em delitos funcionais ou na prática de atos contrários à Constituição”.

A seguir, estudei os artigos 138, 139 e 142 da Lei das SAs, que impõem, principalmente no artigo 142, inciso 3º, responsabilidade dos Conselhos de Administração na fiscalização da gestão de seus diretores, com amplitude absoluta deste poder.

Por fim, debrucei-me sobre o parágrafo 4º, do artigo 37, da Constituição Federal, que cuida da improbidade administrativa e sobre o artigo 11 da lei nº 8.429/92, que declara: “Constitui ato de improbidade administrativa que atente contra os princípios da administração pública ação ou omissão que viole os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade e lealdade às instituições”.

Ao interpretar o conjunto dos dispositivos citados, entendo que a culpa é hipótese de improbidade administrativa, a que se refere o artigo 85, inciso 5º, da Lei Suprema dedicado ao impeachment.

Na sequência do parecer, referi-me à destruição da Petrobras, reduzida a sua expressão nenhuma, nos anos de gestão da presidente Dilma Rousseff como presidente do Conselho de Administração e como presidente da República, por corrupção ou concussão, durante oito anos, com desfalque de bilhões de reais, por dinheiro ilicitamente desviado e por operações administrativas desastrosas, que levaram ao seu balanço não poder sequer ser auditado.

Como a própria presidente da República declarou que, se tivesse melhores informações, não teria aprovado o negócio de quase US$ 2 bilhões da refinaria de Pasadena (nos Estados Unidos), à evidência, restou demonstrada ou omissão, ou imperícia ou imprudência ou negligência, ao avaliar o negócio.

E a insistência, no seu primeiro e segundo mandatos, em manter a mesma diretoria que levou à destruição da Petrobras está a demonstrar que a improbidade por culpa fica caracterizada, continuando de um mandato ao outro.

À luz desse raciocínio, exclusivamente jurídico, terminei o parecer afirmando haver, independentemente das apurações dos desvios que estão sendo realizadas pela Polícia Federal e pelo Ministério Público (hipótese de dolo), fundamentação jurídica para o pedido de impeachment (hipótese de culpa).

Não deixei, todavia, de esclarecer que o julgamento do impeachment pelo Congresso é mais político que jurídico, lembrando o caso do presidente Fernando Collor, que afastado da Presidência pelo Congresso, foi absolvido pela suprema corte. Enviei meu parecer, com autorização do contratante, a dois eminentes professores, que o apoiaram (Modesto Carvalhosa, da USP, e Adilson Dallari, da PUC-SP) em suas conclusões.

(Original aqui.)

Obs.: o parecer completo pode ser lido aqui.

2º texto

Impeachment: fantasia política sem base jurídica

Desde a reeleição da Presidente Dilma Rousseff, em outubro de 2014, quando ela recebeu do povo brasileiro, por meio de votação livre e rigorosamente democrática, 54 milhões de votos para exercer um segundo mandato na Presidência da República, começaram a aparecer na imprensa declarações de dirigentes e militantes do PSDB, partido derrotado, sugerindo e ameaçando a adoção de medidas antidemocráticas visando tirá-la da Presidência e partir para uma aventura, sem qualquer consideração pelos interesses do Brasil e de seu povo. Dando sequência a essas manifestações dos perdedores inconformados, a imprensa vem divulgando nos últimos dias, com injustificável evidência, a informação de que, aproveitando as revelações sobre a prática de corrupção na Petrobras, envolvendo quantias muito elevadas, está sendo cogitada uma proposta de impeachment da Presidente Dilma. E foi dada publicidade a um parecer que fora encomendado ao prestigioso jurista Ives Gandra Martins, para apoiar a tese segundo a qual o fato de que ela era Presidente do Conselho de Administração da Petrobras quando, em 2006, foi decidida a compra da refinaria de petróleo de Pasadena, nos Estados Unidos, por preço exorbitante e favorecendo ilegalmente alguns altos funcionários da Petrobras que foram intermediários da compra, esse fato de 2006 daria o fundamento jurídico para o impeachment. Um dado expressivo é que os que fazem essa acusação admitem que ela não praticou qualquer ato de má-fé naquela oportunidade, apoiando conscientemente um mau negócio ou acobertando a ação corrupta dos funcionários que participaram da realização do negócio, mas dizem que foi culpada por omissão, não impedindo aquelas irregularidades. E aí estaria o fundamento para o pedido de destituição de Dilma Rousseff da Presidência da República.

Para que se compreenda o significado dessa ameaça à Presidente da República e para que mesmo os leigos em matéria jurídica possam entender e avaliar o significado de tal ameaça, inclusive recebendo esclarecimentos sobre a real possibilidade jurídica de sua utilização, é oportuna a divulgação de uma análise, ainda que sucinta, do enquadramento jurídico dessa questão, pois isso interessa a todo o povo brasileiro. Evidentemente, forçar a Presidente da República a deixar o cargo antes do prazo de vencimento do mandato recebido do povo é ato de extrema gravidade, que, mesmo quando praticado com rigorosa obediência aos preceitos constitucionais e legais, acarreta grave perturbação na vida do País. E se a deposição da Presidente ocorrer por um ato de força, mesmo que com aparente base jurídica, estará sendo dado um golpe de Estado, que poderá ser muito conveniente para um pequeno grupo de golpistas mas será extremamente danoso para todo o povo, significando a implantação de uma ditadura, com suas inevitáveis mazelas.

O primeiro ponto que deve ser esclarecido é que nem na Constituição nem nas leis brasileiras aparece a palavra impeachment. Essa palavra, de origem inglesa, quando aplicada para determinar a retirada, com o caráter de punição, de um governante ou administrador público de seu cargo, tem o significado de «destituição» ou «impedimento». E é isto que se está pretendendo pedir agora. A possibilidade jurídica de pedir a destituição do Presidente da República está expressamente prevista na Constituição, no artigo 85, segundo o qual «são crimes de responsabilidade, cuja prática dará fundamento para afastá-lo do cargo, os atos do Presidente da República que atentem contra a Constituição Federal e especialmente contra: … V. a probidade na administração». O que se tem aí é o enunciado genérico dos crimes de responsabilidade. Se o Presidente da República cometer algum desses crimes poderá ser destituído por decisão do Congresso Nacional, obedecidos os procedimentos que a própria Constituição estabelece. E no parágrafo único desse mesmo artigo dispõe-se, expressa e claramente: «Esses crimes serão definidos em lei especial, que estabelecerá as normas de processo e julgamento». A lei especial aí referida, que trata especificamente dos crimes de responsabilidade, é a Lei Federal n° 1079, de 10 de Abril de 1950, que, segundo opinião unânime dos juristas, foi recepcionada pela Constituição de 1988.

Quanto à definição dos crimes, que lhe cabe por disposição constitucional, dispõe a Lei 1079, no artigo 1°, que «são crimes de responsabilidade os que esta lei especifica», fazendo em seguida, em vários incisos, a enumeração das espécies de crimes, dispondo o inciso V sobre os que atentam contra «a probidade na administração». E quanto a estes, no artigo 9°, que completa os dados necessários para esta breve análise, estabelece a lei que «são crimes de responsabilidade contra a probidade na administração: … 3. não tornar efetiva a responsabilidade «dos seus subordinados» (obviamente, subordinados do Presidente da República, que é o objeto exclusivo da lei).

Sintetizando o que acaba de ser exposto, há dois requisitos fundamentais que devem ser observados para dar consistência jurídica a um pedido de destituição do Presidente da República por ter praticado um crime de responsabilidade, como prevê o artigo 85 da Constituição: o primeiro ponto é que a base fática indispensável para tornar viável um pedido dessa natureza é que se apontem, como fundamento, «atos do Presidente da República». Isso está expresso na Constituição e seria evidentemente inconstitucional um processo de impeachment que se fundamentasse em atos ou omissões ocorridos quando, anos atrás, Dilma Rousseff ocupava um cargo na direção da Petrobras. Outro ponto é que por disposição expressa da Lei 1079, que define os crimes de responsabilidade, outra hipótese de configuração da prática de crime de responsabilidade é o fato de não tornar efetiva a responsabilidade de seus subordinados, ou seja, dos subordinados da Presidência da República. Como é público e notório, a Presidente Dilma Rousseff, tão logo informada das acusações de corrupção na Petrobras, determinou que fossem adotadas providências rigorosas visando esclarecer os fatos e punir os eventuais culpados. Basta a consideração desses dois pontos para que se entenda minha respeitosa discordância do parecer do ilustre colega Ives Gandra Martins, acima referido.

Para finalizar, é importante que se saiba que desde a posse da Presidente Dilma Rousseff para exercer o primeiro mandato presidencial até agora já foram protocolados na Câmara dos Deputados, que é por onde deve começar o processo, doze pedidos de impeachment. Em todos esses casos os pedidos foram examinados por uma Comissão Especial da Câmara dos Deputados, como previsto em seu regimento, tendo sido proposto por ela e decidido pelo plenário o arquivamento de todos eles, por absoluta falta de fundamento legal. Se agora for apresentado um novo pedido, como tem sido ansiosamente sugerido por altos dirigentes do PSDB, e se esse pedido tiver a pretensão de se basear na fundamentação jurídica acima referida, certamente haverá mais um arquivamento, em obediência às disposições constitucionais e para preservação da ordem jurídica democrática no Brasil. Assim, pois, a ameaça de pedido de impeachment não deve ser levada a sério, não merecendo ser tratada como possibilidade real, mas sim como simples desabafo de maus perdedores tentando manter-se em evidência.

(Original aqui.)

E você, o que acha?

Considera que existe ou não base – jurídica e política – para a realização de um impeachment? Vote na enquete abaixo.

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Obs.: a enquete não possui nenhum valor científico, sendo aqui apresentada apenas como mecanismo para saber a opinião dos leitores.

4 comentários em “Impeachment ou não?”

  1. Para mim há um ponto importante nessa suposta “legitimidade” da vencedora da eleição, que é a insistência em se considerar normal uma apuração feita sem nenhuma publicidade e em total sigilo. Examinar a captação de votos num tipo de pleito realizado via urnas eletrônicas e, portanto, deixar claro que a apuração foi realizada sem fraude, isso seria necessário. O precedente que se abre no sigilo da apuração lançará trevas sobre todas as eleições futuras. É bom lembrar que essas urnas foram rejeitadas e mesmo tornadas inconstitucionais em vários países, e há pelo menos dois laudos técnicos de altos profissionais de informática (da UnB, inclusive) acusando a possibilidade de fraude. Eu gostaria de saber por qual razão esse ponto não foi até hoje esclarecido. Exigir transparência numa apuração não me parece coisa de mau perdedor. Isso é coisa de quem teme, como eu temo, uma espécie de legitimação de um sigilo que não pode existir em eleições. Digo ainda mesmo diante do fato de existir quem queira fazer uso puramente político e oportunista de um fato que, não obstante, continua sendo um fato absolutamente problemático de não sabermos como foi realizada a apuração.

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    • Concordo com você, Márcio. Infelizmente o TSE apenas diz que “realizamos testes e para nós está tudo ok”. É como perguntar à raposa se o galinheiro está sendo bem cuidado. Não que o TSE necessariamente seja uma raposa, mas “quem não deve não teme”. Um abraço!

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